“Não morras devido à miséria de outra pessoa!
Baltasar Gracián

Embora exista uma multiplicidade infindável de maneiras para nos sabotarmos a nós próprios, por vezes os nossos problemas não são gerados por nós, mas sim, pelas pessoas que nos rodeiam.

“Uma única pessoa sem alegria é suficiente para criar desânimo constante e céu nublado para toda a família, e é um milagre se não houver uma pessoa assim. A felicidade não é uma doença assim tão contagiosa.”

Existe uma osmose emocional entre os seres humanos, e como Nietzsche aponta, essa osmose é particularmente forte em termos de estados mentais negativos. Mas os perigos de um mau ambiente social não se limitam na absorção de ansiedade, pessimismo ou raiva, pois o nosso ambiente social consegue nos afetar com maneiras mais perversas e uma delas é atuar como um obstáculo à autorrealização.

A razão para isso é simples: se a nossa envolvência vive abaixo do seu potencial, se a nossa família, amigos e colegas são passivos, apáticos, excessivamente ansiosos ou cronicamente preocupados, revelar-se-á muito difícil na presença dessas pessoas, reunir a crença de que podemos ser diferentes. Por esse motivo, cortar as correntes de um mundo social enfermo pode ser o primeiro passo necessário para desenvolver os nossos potenciais interiores e tornar-se uma pessoa mais autorrealizada, ou, na terminologia de Carl Jung, um homem ou mulher mais individualizado:

“Aqui pode-se perguntar… por que é tão desejável que um homem seja individualizado. Não só é desejável, é absolutamente indispensável, pois, devido sua contaminação com os outros, ele forçosamente cai em situações e comete ações que o levam à desarmonia consigo mesmo… [e] age de maneira contrária à sua própria natureza. Consequentemente, um homem não pode estar em harmonia consigo mesmo nem aceitar responsabilidade por si mesmo. Ele sente-se numa condição antiética, degradante, não-livre. Mas a desarmonia consigo mesmo é precisamente a condição neurótica e intolerável da qual ele procura ser libertado, e a libertação dessa condição virá somente quando ele puder ser e agir como achar que é, em conformidade com o seu verdadeiro eu.” — Carl Jung, dois ensaios em psicologia analítica

Agir em conformidade com o nosso verdadeiro é possivelmente a derradeira tarefa que nos foi designada em vida. No entanto, fazer isso quando cercado de influências corruptas engrandece essa tarefa para proporções hercúleas. Se sentimos que o mundo social ocupado está voluntaria ou involuntariamente a frustrar este aspeto essencial, então surge imediatamente a questão: o que podemos fazer sobre isso? A solução ideal é encontrar um novo mundo social para fazer a transição, composto por pessoas que nos elevam e que possuem as características que desejamos cultivar. Passar mais tempo com pessoas que estão a seguir o seu próprio caminho de autorrealização pode ser uma ótima maneira de nos incentivar a fazer o mesmo. Mas às vezes essa solução ideal não é possível. Pois, com tantas pessoas em estado de desarmonia nos dias modernos, encontrar um mundo social saudável para nos incorporar pode ser bastante difícil.

Se não conseguirmos encontrar um mundo social melhor para fazer a transição, outra opção é diminuir o tempo que passamos com outras pessoas e passar mais tempo sozinho. Isso pode parecer uma receita inevitável para doenças mentais, já que uma vida sem relações interpessoais geralmente é considerada como um caminho seguro para a deterioração mental. Mas uma retirada para uma existência mais solitária, se usada construtivamente, é uma excelente maneira de promover o crescimento pessoal e manifestar uma vida mais significativa.

“A capacidade de ficar sozinho é um recurso valioso quando são necessárias mudanças de atitude mental. Após grandes alterações nas circunstâncias, pode ser necessária uma reavaliação fundamental do significado da existência. Numa cultura onde os relacionamentos interpessoais são geralmente considerados a resposta para todas as formas de angústia, às vezes é difícil convencer conselheiros e confidentes bem-intencionados de que a solidão pode ser tão terapêutica quanto o apoio emocional.” — Anthony Storr, Solidão: Um Retorno ao Eu
Anthony Storr foi um inglês psiquiatra, psicanalista e escritor.

A solidão promove a mudança pessoal, à medida que nos liberta das necessidades e expectativas de outras pessoas e, assim, permite a reflexão interior necessária para aprender melhor quem somos. Mas a solidão também é o estado ideal para o uso das nossas faculdades imaginativas e é nossa imaginação que nos introduz ao possível e nos mostra o que nos poderíamos tornar.

“Suponhamos que eu fico insatisfeito com o meu eu habitual, ou sinta que há áreas de experiência ou autocompreensão que não consigo alcançar. Uma maneira de explorar isso é afastando-me do ambiente atual e ver o que emerge. Isso não deixa de ter os seus perigos. Qualquer forma de nova organização ou integração dentro da mente deve ser precedida por algum grau de desorganização. Ninguém pode dizer, até que se tenha experimentado, se essa perturbação necessária dos padrões anteriores será bem-sucedida por algo melhor.” — Anthony Storr, Solidão: Um Retorno ao Eu

Uma maneira de decidirmos reorganizar os padrões da nossa vida é dar um passo mais permanente para longe das relações sociais que definiram o nosso passado e concentrar a nossa energia no cultivo de uma vocação e um propósito para a nossa vida. Enquanto muitos no mundo moderno veem as relações interpessoais como a principal fonte de significado da vida, revela-se legítimo entender que a nossa cultura possa ter ido longe demais nesse aspeto e, no processo, negligenciado outro importante centro em torno do qual uma vida significativa pode ser construída, ou como Storr explica:

“Estou menos convencido de que relacionamentos pessoais íntimos são a única fonte de saúde e felicidade. No clima atual, existe o perigo do amor estar a ser idealizado como o único caminho para a salvação. Quando perguntaram a Freud o que constituía saúde psicológica, ele deu como resposta a capacidade de amar e trabalhar. Enfatizamos demais o primeiro e prestamos pouca atenção ao último… A concentração exclusiva nos relacionamentos interpessoais levou ao fracasso em considerar outras maneiras de encontrar realização pessoal…” — Anthony Storr, Solidão: Um Retorno ao Eu

No seu livro Solidão: Um Retorno ao Eu, Storr detalha a vida de muitos indivíduos famosos que seguiram esse caminho de orientar as suas vidas em torno do seu trabalho e que, no processo, criaram vidas significativas.

Escritores como Beatrix Potter e Anton Chekhov cresceram em condições sociais horríveis, mas antes de cair num poço absoluto de desespero, descobriram significado através do seu trabalho e aprenderam que a criatividade e a ordem interna que ela promove podem ser um antídoto eficaz para a desordem externa de um mundo social doente.

Anton Pavlovitch Tchekhov, em russo: Анто́н Па́влович Че́хов, foi um médico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.
Helen Beatrix Potter foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre pelos seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal.

Porém, como Storr aponta, também existem inúmeros indivíduos que não sofrem com um ambiente social particularmente severo, mas que ainda optam por tornar os seus interesses e o seu trabalho o principal centro de significado das respetivas vidas. Carl Jung e Sigmund Freud, dois homens que dedicaram as suas vidas ao estudo dos fatores que promovem o florescimento humano, são dois indivíduos que escolheram esse mesmo caminho.

“É certamente notável que, quando eles escreveram as suas autobiografias, os dois analistas mais originais do século XX não dedicaram quase nada às suas esposas e famílias, ou mesmo qualquer outro aspeto, exceto o desenvolvimento das suas respetivas ideias. Tanto o estudo autobiográfico de Freud quanto as memórias, sonhos e reflexões de Jung são excecionalmente pouco elucidativas sobre as relações dos seus autores com os outros. Podemos aplaudir a discrição e simpatizar com o desejo de privacidade; mas também podemos concluir, com justiça, que os seus próprios relatos demonstram onde os seus corações estavam centrados.” — Anthony Storr, Solidão: Um Retorno ao Eu

Se escolhermos seguir esse caminho e recuar para a solidão para reorientar nossa vida em torno de uma vocação, esse processo também pode ser o meio para uma vida social mais engrandecedora. Pois, ao encontrar uma forma de trabalho intrinsecamente gratificante e depois gastar o tempo necessário para nos tornarmos bons no que fazemos, ficaremos mais seguros de nós mesmos e menos dependentes da validação dos outros.

Por outras palavras, tornar-nos-emos num homem ou numa mulher com funcionamento superior. Quanto mais nos movamos na direção da autorrealização, mais gravitamos em relação a outras pessoas no encalço de objetivos semelhantes. Além disso, à medida que nos tornamos mais autoconfiantes e menos exigentes com as outras pessoas, como ocorre com aqueles que encontram significado no seu trabalho, os nossos relacionamentos existentes também podem melhorar como resultado direto, ou como Storr explica:

“A nossa expectativa de que satisfazer relacionamentos íntimos deve, idealmente, proporcionar felicidade e que, se não o fizerem, deve haver algo errado com esses relacionamentos, parece ser exagerada… Pode ser a nossa idealização de relacionamentos interpessoais no Ocidente que faz com que o casamento, supostamente o vínculo mais íntimo, seja tão instável. Se não considerássemos o casamento a principal fonte de felicidade, menos casamentos terminariam em lágrimas.” — Anthony Storr, Solidão: Um Retorno ao Eu

Esse retiro para a solidão é apenas uma das várias técnicas que exploramos nos últimos ensaios que podem ser usados para promover a nossa saúde mental e melhorar a nossa vida. Muitas pessoas, depois de ouvirem estas temáticas exploradas, podem experimentar um momentâneo sentimento de otimismo e uma dose de encorajamento, mas depois voltam rapidamente a fazer o que sempre foi feito. Nenhuma mudança significativa é feita e a vida continua como antes. O erro que muitos de nós costumam cometer é ignorar o fato de que às vezes não é a mudança que apresenta os perigos mais graves, mas a escolha de permanecer o mesmo.

“Porque é que as pessoas repetem o mesmo comportamento autodestrutivo?” escreveu Alexander Lowen. “Para responder a essa pergunta, eu compararia a personagem humana com uma concha. Sair do caráter é como nascer ou, mais precisamente, renascer. Para um indivíduo consciente, esse é um movimento muito assustador e aparentemente perigoso de se fazer. A fissura da concha é equivalente a um confronto com a morte. Viver envolvido nessa proteção parece garantir a sobrevivência, mesmo que represente uma limitação severa na vida de alguém. Ficar na concha e sofrer parece mais seguro do que arriscar a morte por liberdade e alegria. Esta não é uma posição conscientemente pensada.” — Alexander Lowen, a voz do corpo
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