“Se a estrutura corporal e o temperamento estão relacionados, como qualquer pessoa que estuda a natureza humana consegue determinar, então a questão revela-se: É possível mudar o carácter de um indivíduo sem alguma alteração na estrutura corporal e na sua motilidade funcional?”
Alexander Lowen, A Linguagem do Corpo

O nosso corpo não reflete apenas passivamente o estado do nosso carácter, ele também o molda ativamente. Podemos mudar quem somos, mudando a forma como nos seguramos, nos movemos e alimentamos o nosso corpo e neste ensaio tentarei explorar algumas técnicas que aproveitam o poder desta abordagem ascendente ao desenvolvimento do carácter.

Para começar, precisamos de abordar brevemente a importância dos fundamentos da saúde corporal – nomeadamente o exercício, a alimentação e a respiração. Sem exercício físico consistente e uma dieta saudável, o estado do nosso corpo permanecerá sempre abaixo do limiar do seu potencial. A importância destes dois primeiros fundamentos é de conhecimento comum, mas o que se revela talvez como mais fundamental de todos os fundamentos enumerados, seja mesmo a nossa respiração, afigurando-se uma área à qual poucos prestam séria atenção. A forma adequada de respirar depende da situação naturalmente, mas uma regra simples e poderosa é respirar mais pelo nariz, menos pela boca, e para dentro da barriga em vez do peito. Respirar desta forma é uma forma simples de mudança que pode trazer enormes dividendos, uma vez que os ritmos da nossa respiração influenciam grandemente a forma como nos sentimos, tanto mental como fisicamente.

Mas estes fundamentos não serão o foco deste ensaio, uma vez que existem amplos recursos que cobrem todos estes três domínios. Em vez disso, vamos concentrar-nos em duas práticas poderosas que abordam duas deficiências que impedem muitos de nós de alcançar o tipo de corpo que pode dar origem a um carácter engrandecedor. A primeira destas deficiências é uma fraca ligação ao nosso corpo e uma consolidação insuficiente à terra sob os nossos pés. Isto está a impedir a nossa capacidade de agir com a agressão natural que a vida exige. A segunda deficiência é uma falta de conforto dentro da nossa própria pele e isto é responsável pela incapacidade de tantos de nós de nos movermos com a espontaneidade, coordenação e graça geral que significa a saúde corporal.

No seu livro “The Spirituality of the Body” Alexander Lowen de 1988 escreveu o seguinte:

“When I was a young man, being “earthly” was regarded as a virtue. I never hear anyone described that way anymore. Has the quality of having one’s feet on the ground lost its meaning? I believe it has. The modern individual is more properly described as “flying high and fast.” . . . It is difficult to be grounded when the culture itself is ungrounded. . .”
Alexander Lowen foi um psicanalista americano de orientação freudiana.

Nas três décadas desde que estas palavras foram escritas, a ascensão dos smartphones e outras tecnologias móveis, apenas exacerbaram a questão que Lowen identificou. Somos talvez a cultura menos “enraizada” da história. Muitos de nós passamos uma parte considerável da nossa vida pregada a ecrãs, a nossa mente completamente consumida por lampejos de luz e os nossos corpos completamente ignorados. As horas que passamos nos nossos aparelhos deixam menos tempo para atividades que utilizam o nosso corpo para efetuar mudanças no mundo real e esta mudança na forma como nos comportamos está a diminuir a nossa capacidade de nos mantermos em pé e de nos movermos corajosa e proactivamente. Basta refletir sobre a experiência pessoal para compreender porque razão é este o caso – passar horas a olhar para um ecrã, a percorrer as vidas cultivadas e os pensamentos dos outros, não deixa um sentimento revigorado e fortalecido, mas ligeiramente desorientado e letárgico. Contrastemos isto com a acão no mundo real, com atividades que fazem uso do corpo e que nos forçam a experimentar a solidez da terra debaixo dos nossos pés. Tais ações concedem-nos poder e encorajam-nos. Um homem que compreendeu bem isto, e que usou este conhecimento em seu proveito, foi Friedrich Nietzsche:

“Sentar-se o menos possível; não acreditar em nenhuma ideia que não tenha nascido ao ar livre e de livre movimento – em que os músculos também não se deleitem…Sentar-se imóvel (já o disse uma vez) – é o verdadeiro pecado contra o Espírito Santo”.
Nietzsche, Ecce Homo
Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha.

Nietzsche pode não ter enfrentado a mesma ameaça desencarnadora que caracteriza a tecnologia moderna, mas ao entrar na casa dos 30 anos, a sua saúde estava num tal estado de declínio que estava a afetar a sua capacidade de realizar qualquer tipo de atividade. Até a leitura o esgotava e drenava energeticamente e em 1879 as suas intensas enxaquecas e frequentes vómitos forçaram-no a retirar-se do seu ofício na Universidade de Basileia. Mas em vez de se retirar do mundo e sucumbir ao seu estado de saúde decadente, Nietzsche adotou uma abordagem diferente.

“. …encontro-me de novo um eremita, e faço dez horas por dia de caminhada dos eremitas. . .”

Nietzsche entregou-se ao simples ato de caminhar para o transformar do carácter lamentável que havia forçosamente adotado – doente tanto no corpo como na mente – para o estatuto de um filósofo absolutamente lendário. Andando mais de 8 horas por dia, Nietzsche recuperou a sua saúde e na década seguinte compôs as 10 obras que o iriam tornar famoso. Muitas das suas ideias mais profundas foram formadas nas suas longas, solitárias e muitas vezes árduas caminhadas:

“Há mais sabedoria no teu corpo do que na tua filosofia mais profunda”.

Podemos seguir o exemplo de Nietzsche e usar a caminhada também para o nosso benefício. Caminhar, segundo o psicólogo Michael Mahoney, “é provavelmente a forma mais benéfica de movimento humano” (Psicoterapia Construtiva) e para aqueles que se caracterizam por ter a cabeça presa nas nuvens, o ato de caminhar é uma excelente forma de nos voltarmos a relacionar com a terra sob os nossos pés:

“There is no way of being more earthbound than by walking: the immeasurable monotony of the soil.”
Frederic Gros, A Philosophy of Walking
Frédéric Gros, nascido em 1965, é um professor de Filosofia na Universidade de Paris X e curador da obra de Michel Foucault na Pléiade.
In A Philosophy of Walking, a bestseller in France, leading thinker Frederic Gros charts the many different ways we get from A to B.

Para além de nos enraizar, caminhar é uma excelente forma de ligação ao nosso corpo, uma vez que é uma das formas mais naturais do movimento humano. Além disso, a utilização consistente das nossas pernas que esta atividade implica, pode promover uma abordagem mais agressiva da vida, pois, como ressalva Lowen:

“A agressão está directamente relacionada com a função das pernas num adulto, uma vez que as nossas pernas nos movem em direcção às coisas que queremos. Se a motilidade das pernas de uma pessoa é diminuída, a sua agressividade é reduzida”.
Alexander Lowen, A Voz do Corpo

O tipo de caminhada necessária para alcançar tais benefícios não é o mero passeio até à loja ou à paragem do autocarro, mas sim o passeio a pé com a exclusiva vontade de caminhar. Medir a caminhada com horas e não com minutos.

“I think that I cannot preserve my health and spirits, unless I spend four hours a day at least—and it is commonly more than that—sauntering through the woods and over the hills and fields, absolutely free from all worldly engagements.”
Henry David Thoreau, Walking
Henry David Thoreau foi um autor americano, poeta, naturalista, pesquisador, historiador, filósofo e transcendentalista.

Porém se caminhar pode ajudar a estruturar o corpo de forma a promover uma abordagem mais proactiva da vida, um obstáculo adicional que muitos de nós enfrentaremos na abordagem ascendente ao desenvolvimento do carácter relaciona-se com a falta de conforto dentro da nossa própria pele.

“Porque uma coisa é necessária: que um ser humano deve atingir a satisfação consigo mesmo. Quem estiver insatisfeito consigo próprio está continuamente pronto para a vingança, e nós os “outros” seremos as suas vítimas, nem que seja só por ter de suportar a sua visão feia”.
Nietzsche, The Gay Science

A satisfação consigo próprio é uma componente crucial de um grande carácter e a verdadeira autossatisfação exige que estejamos satisfeitos com o nosso corpo. Se estivermos excessivamente complexados ou envergonhados do nosso corpo, isso irá lesionar o nosso carácter e interferir com a nossa capacidade de desfrutar das interações sociais. Em vez de nos movermos com espontaneidade, coordenação e uma graça geral, um mal-estar depreendido produzirá um movimento estranho e rígido.

O primeiro passo para se cultivar uma imagem corporal saudável é abandonar o ideal cultural que liga o orgulho ou a vergonha do nosso corpo à nossa aparência. A beleza superficial tão apreciada na sociedade moderna é, na sua maioria, um produto da nossa faticidade genética e da nossa idade, e por isso não está obviamente ao alcance da maioria das pessoas. Mas para todos nós que não nascemos com a beleza de Hollywood, não precisamos de desesperar, uma vez que o orgulho no nosso corpo ainda é alcançável sendo um orgulho que transcende mesmo o conceito de aparência, tão facilmente vitimado pela idade. Em vez de medirmos o nosso valor corporal na nossa aparência, devemos lutar pelo ideal do poder corporal.

“O que é bom? – Tudo o que aumenta os sentimentos de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem. O que é mau? – Tudo o que provém da fraqueza. O que é a felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – que uma resistência é vencida”.
Nietzsche, O Anticristo

Como aumentamos então o nosso poder corporal? Centramo-nos no cultivo de competências e na participação em atividades que utilizam o lado somático do nosso ser de forma a trazer alegria e prazer à nossa vida. Tais atividades podem assumir muitas formas, seja pintar, esculpir, construir coisas, remediar coisas, aprender um desporto, levantar pesos, escalar montanhas, tocar um instrumento, ou dançar, qualquer coisa que nos obrigue a usar o nosso corpo de uma forma saudável para efetuar mudanças no mundo real ou experimentar uma maior amplitude de movimentos, pois como Vincent van Gogh afirmou:

“The great thing is to gather new vigor in reality.”

À medida que a nossa proficiência aumenta nas atividades que escolhemos, o nosso corpo deixará de ser apenas o veículo que nos transporta do ponto A para o ponto B e que alberga a nossa mente enquanto olhamos para os ecrãs, e em vez disso tornar-se-á uma fonte primária da alegria e do prazer que fazem a vida valer a pena viver. O cultivo de competências do mundo real também irá melhorar a nossa adaptação ao ambiente e isto irá aumentar ainda mais a satisfação que temos com o nosso corpo:

“When we become competent in some particular field of practice,” wrote Matthew Crawford “our perception is disciplined by that practice; we become attuned to pertinent features of a situation that would be invisible to a bystander. Through the exercise of a skill, the self that acts in the world takes on a definite shape. It comes to be in a relation of fit to a world it has grasped.”
Matthew Crawford, The World Beyond Your Head

A luta pelo ideal do poder corporal pode transformar a nossa vida. Oferece um caminho para sair da miséria de sermos obcecados pela aparência e coloca-nos num caminho onde um conforto verdadeiro e duradouro na nossa pele se torna possível. Mas à medida que damos estes passos de reconexão ao nosso corpo através do caminhar e da remodelação da nossa imagem corporal através do cultivo de competências do mundo real, podemos também querer considerar o ambiente em que o nosso corpo habita. Pois o sistema integrado de psique nunca poderá escapar à influência do mundo em que se encontra. No próximo ensaio tentarei explorar como as pessoas e as coisas que nos rodeiam afetam o nosso bem-estar e como no nosso mundo hiper-conectado o que muitos de nós carecemos é de solidão, pois como Goethe afirmou:

“O melhor é o silêncio profundo em que vivo e cresço contra o mundo, e colho o que eles não me podem tirar pelo fogo e pela espada”.
Johann Wolfgang von Goethe foi um polímata, autor e estadista alemão do Sacro Império Romano-Germânico que também fez incursões pelo campo da ciência natural. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.
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