“Now there are times when a whole generation is caught. . .between two ages, two modes of life, with the consequence that it loses all power to understand itself and has no standards, no security, no simple acquiescence.”

Hermann Hesse, Steppenwolf

Existem momentos em que a tentativa de conciliar as disposições predominantes do mundo interior do sujeito com as expectativas do mundo exterior objeto se revela especialmente excruciante. Surge mesmo um receio desconfortável e persistente de perder a habilidade social ou ser acometido por uma espécie de deficiência na interpretação das prioridades geracionais e quais as ambições a ser partilhadas e os embaraços inconvenientes a esconder.

Exercitar o distanciamento intelectual e o desapego na excessiva materialização do pensamento é uma atividade cada vez mais preponderante numa conjuntura exageradamente tribal e desprovida de objetividade moral. Visitar territórios abstratos consciente da poluição conceptual insistente e dos constrangimentos a empecilhar a linguagem é uma corrente de pensamento que inevitavelmente nos faz desaguar à incontestada questão se vivemos numa época onde a normalidade se tornou numa enfermidade.

Será que a nossa sociedade, além de consentir, já chega mesmo a privilegiar a postura corruptiva e o inelutável comportamento do corrompido?

Esta interrogação que tantas vezes me inicia a meditação faz-se acompanhar de um gesto recorrente, que sempre surge quando alguém me explica o cinismo que separa a realidade da sua arquitetura teórica, um menear de cabeça sarcástico com um sorriso a compreender a evidência do que está a ser desafogado. Porém, por vezes esqueço-me que é óbvio que os políticos se deixam corromper de forma a assegurar uma posterior prosperidade financeira, que é óbvio que se tenta acomodar um familiar ou um amigo profissionalmente quando existe essa possibilidade, que é óbvio que se tem de ludibriar a autoridade tributária e que a verticalidade social se constrói com alienação disfuncional. Daí a primeira ramificação na questão ser: Será que a nossa sociedade está tão corrupta que quanto mais adaptado menos funcional nos tornamos?

Houve uma leitura que me surgiu numa fase ainda relativamente pubertária que me deixou perplexo, como se de um golpe fraturante na minha intelectualidade se tratasse, a obra cujo aquisição foi motivada pelo título sugestivo era o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária” do La Boétie, o pródigo melhor amigo de Montaigne. Recordo-me da epifania emprestada pelo autor na descrição exímia de como o poder da autoridade assenta na obediência consentida dos oprimidos e na definição apurada da normalidade como agente mediador na coação das bases piramidais. E é com essa recordação salutar que operou a transformação na adolescência que se volta a revelar preponderante debruçarmo-nos não só na etimologia da palavra “normal” – do Latim normalis, “de acordo com a regra”, originalmente “feito de acordo com o esquadro do carpinteiro”, que era chamado norma e se usava para marcar ângulos retos. Passou a designar tanto “o que está na perpendicular” como “o que segue o padrão” – mas também na sua versátil conceptualização.

O conceito de normalidade relaciona-se intimamente com a sociedade em que vivemos. No tempo e no espaço, e de cultura para cultura, os padrões de normalidade diferem. Mas enquanto a normalidade é culturalmente variável, há uma essência no que significa ser normal e essa essência está na conformidade. Ser normal é ser conformista, ser guiado pelo status quo, aceitar os dogmas da época e aderir ao sistema de valores dominante da sociedade onde se insere, ou como escreveu o psicólogo Steven Bartlett:


“. . . ‘Normalidade psicológica’ é o conjunto de características típicas e socialmente aprovadas do funcionamento afetivo, cognitivo e comportamental, um conjunto de características derivadas do grupo de referência que consiste na maioria na população de uma sociedade. . .”


Durante grande parte da história da humanidade, contrariar as normas vigentes da sociedade integrante revelou-se uma proposta tremendamente arriscada e por vezes fatídica, pois aumentava consideravelmente a possibilidade de ser rejeitado pelo respetivo grupo social e diminuía também a capacidade de sobrevivência e o sucesso evolutivo. A conformidade, fundamentalmente, é uma das características que foi selecionada pelo processo evolutivo e isso pode ajudar a explicar a forte atração pelo que consideramos ser normal. Outro fator que torna a normalidade atraente é a nossa tendência, semelhante em todas as criaturas biológicas, de seguir o caminho de menor resistência. A vida é muito complicada para improvisar novas maneiras de lidar com todas as situações e, na maioria das vezes, fazemos o que os outros fazem e pensamos como os outros pensam. Esta disposição intrínseca da humanidade de se conformar, segundo a mesma ótica antropológica acaba por ser essencial, pois promove coesão, cooperação social e permite que uma sociedade se desenvolva de maneiras complexas que seriam impossíveis se não fossemos uma espécie em conformidade.

Todavia, apesar de ser inegável que a conformidade nos ajudou a sobreviver no passado ​​e que é necessário um mínimo considerável para que uma sociedade se revele funcional, não se pode afirmar que a conformidade seja uma característica auspiciosa. Pois, o valor da conformidade depende das condições e da caracterização da sociedade em que se vive. Além disso, a conformidade deve ser equilibrada por uma dose saudável de não conformidade, para que a cultura não fique estagnada. Pois é a não conformidade que cria o novo, expõe as falhas do antigo e ajuda a empurrar a sociedade para melhores fronteiras. No Ocidente, no entanto, há uma tendência a supervalorizar a conformidade e rotular, estigmatizar, ostracizar e, em casos extremos, até institucionalizar qualquer um que se afaste demais dos padrões de normalidade comumente aceites.

Talvez o autor que mais se aproximou de caricaturar devidamente esta dicotomia que opõe a normalidade conformista da anormalidade enlouquecida tenha sido Michel Foucault com o seu “História da Loucura” onde uma das ideias centrais é que a loucura não é algo que provém de “natureza” ou uma “doença”, como acreditavam os psiquiatras, mas sim algo resultante e consequente, um “fato cultural”.

Foucault deu continuidade ao seu diagnóstico e estendeu o seu comentário para as relações de poder, fazendo regressar a afamada conceptualização do panótico do Jeremy Bentham de forma a caracterizar a coercibilidade do coletivo no comportamento singular, esta complexidade inerente a este conflito do sujeito individual com a coletividade nunca poderia ser sucintamente capturada pelo aforismo concludente de Benjamin Rush:

“Sanity – aptitude to judge things like other men, and regular habits, etc. Insanity a departure from this.”

A adaptação a uma sociedade doente produz doenças, a conformidade num mundo louco produz loucura e, nesses casos, a definição de sanidade de Rush é invertida: a sanidade torna-se um afastamento da normalidade e a normalidade aproxima-se da loucura. Além disso, associar saúde mental à conformidade ignora o fato de que a conformidade excessiva pode facilmente produzir uma rigidez psicológica e comportamental doentia que prepara o conformista para um grande sofrimento, caso ele esteja destinado a viver algum tipo de perturbação social importante, ou como Carl Jung escreve no seu livro “Psychological Types”:

“[The normal man] may indeed thrive in the surroundings [of his society], but only up to the point where he and his milieu meet with disaster for transgressing the laws [of reality and human nature]. He will share the general collapse to the same extent as he was adjusted to the previous situation. Adjustment is not adaptation; Adaptation requires far more than merely going along smoothly with the conditions of the moment. It requires observance of laws more universal than the immediate conditions of time and place. The very adjustment of the normal [individual] is his limitation.”

Em momentos de estabilidade social, a conformidade pode facilitar a vida, mas, em momentos de instabilidade social, quanto maior a nossa conformidade, mais a nossa mente irá agir como um espelho refletindo o caos da sociedade. Por esse motivo, uma crise social pode facilmente induzir uma crise de identidade em massa numa população de conformistas fervorosos, ou como o sociólogo Gerald Platt explica:

“A perda de ordens sociais familiares e o lugar delas é potencialmente caótica. As pessoas que não conseguem sustentar uma sensibilidade biográfica de identidade pessoal, continuidade, sentimentos de valor, autoestima, pertença a uma comunidade e assim por diante, são facilmente dominadas por experiências afetivas. Quando essas condições se tornam generalizadas, a sociedade passa por uma crise de sentido e significado.”

Mas talvez a maneira mais simples de julgar o valor da normalidade ocidental seja fazer a seguinte pergunta: O homem ou a mulher comum aparecem como um indivíduo forte, armado com os traços de caráter para enfrentar os desafios da vida ou parafraseando o autor Richard Weaver, “the typical modern have the look of the hunted”? (As ideias têm consequências) Dada a reação de rebanho à crise atual e a facilidade com que a maioria das pessoas pode ser induzida a um estado de pânico e medo, a última opção parece mais provável.

“We are on guard against contagious diseases of the body, but we are . . .careless when it comes to the even more dangerous collective diseases of the mind.”

Carl Jung, The Earth Has a Soul

Se uma doença coletiva da mente se espalhou desenfreadamente pelo mundo, a única solução para aqueles que desejam manter a sua sanidade mental é aprender sobre as particularidades essenciais que estimulam o florescimento humano e construir as suas vidas alicerçadas nesses fundamentos. Temos uma natureza permanente, com raízes que remontam à nossa história evolutiva e, como Jung aponta:

“…quando um organismo vivo é arrancado das suas raízes, perde uma conexão com o fundamento de sua existência sendo que a consequência inevitável é que venha a perecer.”

E esta irresolução constitui a falha fatal da conceção de normalidade do Ocidente: ela falha contundentemente quando tenta explicar adequadamente as demandas de nossa natureza e uma das maneiras gritantes com que faz isso é fornecer saídas inadequadas para o que Friedrich Nietzsche considerava o mais fundamental dos nossos impulsos, ou seja, a nossa vontade de poder. Pois enquanto muitas pessoas estão cientes do ditado “o poder absoluto corrompe absolutamente”, poucas entendem, como escreveu o psicólogo Rollo May, que: “A ausência de poder pessoal pode ser igualmente corrupta”. Num nível individual, a impotência leva à inveja, à autocaracterizarão de vítima e à apatia que promove doenças mentais, sendo que este sentimento desprovido no panorama social cria uma população de homens e mulheres desapontados, abrindo caminho para a tirania ou corrupção ideológica.

“Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder…” – Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

E neste ponto regressamos ao desconforto que principiou esta sucinta reflexão sobre conformidade, poder e liberdade. Henry Thoreau inspirado pela sua desobediência civil manteve-se fiel aos seus axiomas num espírito honroso a fazer lembrar a assertividade do imperativo categórico, porém o conjunto literário e filosófico que me vai engradecendo a insónia são os aspetos comuns que aproximam autores tão distintos e distanciados na nossa temporalidade ocidental como Etienne de la Boétie (1530-1563) que em 1548 escreveu O discurso da servidão voluntária, Jeremy Bentham (1748-1832) que em 1787 escreveu O panótico, e Michel Foucault (1926-1984) que em 1975 escreveu Vigiar e Punir. Conciliar estas leituras com a conjuntura atual onde o diálogo intelectual está a ser seduzido pelo transumanismo, singularidade e biopolítica faz-nos incredulamente regressar (como Sísifo) à inicialdeficiência na interpretação das prioridades geracionais e quais as ambições a ser partilhadas e os embaraços inconvenientes a esconder.

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