A disposição intrínseca do ser humano é uma das cogitações mais antigas que a espécie conhece, assim que o ser humano adquiriu a capacidade pensante presume-se que esta questão não terá tardado a aparecer. A ação humana principia na bondade ou na maldade? Será a espécie fundamentalmente boa ou existe uma impossibilidade de contrariar esta vicissitude que nos aflige comumente logo à nascença? Independentemente da resposta preferida pelo sujeito pensante, revela-se inevitável atalhar pela ponderação referente à compreensão do que caracteriza o bom e o mau, bem como essa relação dual e a sua natureza binária igualmente alusiva ao dia e noite, terra e céu, pássaros e peixes, tudo e nada, vida e morte, mente e matéria (facilmente se prolonga esta enumeração). 

O entendimento teológico do homem como entidade posicionada entre o céu e a terra ajuda a explicar a alegoria bíblica da criação, pois a faculdade lógica herdada pelo criador concebe uma compreensão primordial relacionada com a dicotomia regente de céu e terra, que por sua vez representam simbolicamente a mente e a matéria – o imediato concreto e o transcendente abstrato.

“Deus disse ainda: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. Que ele tenha poder sobre os peixes do mar e as aves do céu”

A aproximação do mar (profundo) ao céu (longínquo), representam a comunhão do infinitamente pequeno com o infinitamente grande, sendo o ponto de encontro a criação realizada no quinto dia que correspondeu à sua imagem. Sem esta versatilidade interpretativa facilmente se descarta a relevância metafórica presente na Bíblia com eventuais alegações de imprecisão científica, pois, é evidente que a relva e as árvores não podem ter precedido o sol. Todavia a leitura deste tipo de documentos não obedece à tendência linear que ornamenta os nossos aparelhos lógicos, existem dimensões simbólicas essenciais que acabam por fundamentar a intemporalidade dos textos religiosos. Aliás, esta advertência que visava desaconselhar essa superficialidade linear foi prontamente sugerida por Maimónides que dedicou grande parte da primeira parte do “Moreh Nebukim” à interpretação dos antropomorfismos bíblicos, procurando definir o significado de cada um e identificá-lo com alguma expressão metafísica transcendental – É importante ressalvar que Maimónides, no entanto, estabeleceu a incorporeidade de Deus como dogma, e considerou qualquer pessoa que negasse essa doutrina como um idólatra.

Maimônides ou Maimónides Moxé Filho de Maimon Filho de Ovayd; também conhecido pelo acrônimo Rambam

Esta dualidade que opõe e simultaneamente concilia mente e matéria, conheceu talvez a sua maior expressividade na teoria das formas platónica, porém houve mesmo um movimento religioso/filosófico que estabeleceu estes paralelismos de uma forma mais assertiva, homogeneizando matéria com o mal e mente com o bem. Esse movimento é hoje conhecido como Maniqueísmo e é entendido como uma filosofia religiosa sincrética e dualística. O sincretismo deve-se à junção de doutrinas diferentes e a dualidade expressa precisamente a dicotomia que estamos a explorar. Postulada pelo profeta persa Mani, também conhecido como Manes ou Maniqueu, o Maniqueísmo é uma combinação de elementos gnósticos, cristãos e orientais, sobre as bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios: um do bem, ou princípio da luz, e outro do mal, ou princípio das trevas. No homem, esses dois princípios são representados por duas almas: a corpórea, que é a do mal, e a luminosa, que é a do bem. Pode-se chegar ao predomínio da alma luminosa através de uma ascese particular, que consiste em três selos: abstinência da carne e de entreter conversas impuras; abstenção da propriedade e do trabalho e por fim abster-se do casamento e do concubinato. 

Manes (profeta) – Wikipédia, a enciclopédia livre
Manes ou Mani também conhecido como Maniqueu

Esta disposição intelectual das forças regentes da motivação humana é deveras inteligível, são numerosas as ilustrações alegóricas no imaginário coletivo deste balancear ponderativo, basta lembrar o anjinho que se assenhora de um ombro e o diabinho que sussurra a infração no outro. Um dos grandes nomes da teologia ocidental, na sua mocidade, encontrou no maniqueísmo a propriedade intelectual mais capaz de responder às inquietações endereçadas. No entanto, após dedicado escrutínio este adepto converteu-se num dos maiores opositores, este pensador maior é evidentemente Agostinho de Hipona, mais conhecido como Santo Agostinho.

Vésperas da Memória de Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja - Liturgia  das Horas
Santo Agostinho

Todas as formas de gnosticismo ensinam que a vida terrena é dolorosa e radicalmente perversa. A iluminação interior, ou gnose, revela que a alma (parte da natureza de Deus), desceu ao mundo maligno da matéria humana e deveria ser salva pelo espírito e inteligência. Era nessa base que os maniqueístas afirmavam que Cristo, sendo o verbo divino, não era consubstancial a Deus tal quanto humano, ou seja, sendo Cristo criado da mesma matéria de Deus, não poderia ser gerado no ventre de uma mulher humana. Santo Agostinho faz, ao longo dos seus discursos em Confissões, duras críticas e severas objeções a esse grupo.

(…) certo de que não era verdadeira a doutrina que estes homens pregavam. Fugia deles com a alma, porque, quando eu indagava a origem do mal, via-os repletos de malícia que levava a crerem antes sujeita ao mal a Vossa substância do que deles ser suscetível de cometê-lo. (Confissões VII, 9) 

Para Santo Agostinho o problema do mal apresentado pelos maniqueus, não provinha de Deus e sim das ações humanas. Para ele revelava-se necessário observar três dimensões do mal:

  • Metafísica, da não existência do mal no cosmos.
  • Moral, onde o pecado humano sobressai as suas virtudes.
  • Dimensão física, proveniente das doenças, dos sofrimentos e da morte humana.

Estas três faces resultantes da corrupção corpórea pesariam sobre a alma, o que não seria a causa, mas a pena do mal. Quando era fiel ao maniqueísmo, Santo Agostinho acreditava que o mal fosse obra de um “deus das trevas”. Nas “Confissões”, ele esboça a ideia de que o livre arbítrio produz efeitos contrários relativamente à moral e ao próprio carácter. Verificando-se uma tentativa de restabelecer o sentido positivo da carne em relação ao pessimismo concebido pelos maniqueus, ou seja, para ele ter paixões não são um mal, o pecado está em não saber dominá-las.

A simplificação concludente fica sintetizada com a sua ideia de que o mal é apenas a ausência do bem, não possuindo uma existência própria. Assim, como as trevas, que são apenas a ausência da luz. Agostinho defendia que, embora tenha criado tudo o que existe, Deus não criou o mal porque o mal não é algo, mas a falta ou a deficiência de algo.

Contudo, esta questão não ficou propriamente esclarecida e terminada, pois mais tarde surgiram dois filósofos igualmente preponderantes que principiaram os seus respetivos edifícios lógicos em ambas as prévias disposições intrínsecas. Um afirmava que o homem era intrinsecamente mau, outro afirmava que o homem era intrinsecamente bom, um chama-se Thomas Hobbes, outro chama-se jean Jaques Rousseau.

Podemos definir a filosofia de Hobbes como corpórea e mecanicista. É corpórea porque os corpos são gerados e por isso, são os únicos sobre os quais é possível raciocinar. É mecanicista porque somente um corpo pode sofrer uma ação. Para ele o prazer, a dor, o querer o ódio e o amor também são movimentos. Em todos esses movimentos não existe um bem e um mal, pois ambos são relativos se levarmos em conta que o bem é aquilo que procuramos e o mal aquilo do qual fugimos e que as pessoas procuram ou tentam se afastar. Mesmo não existindo um bem e um mal como valor absoluto, Hobbes admite que exista um primeiro bem que precede muitos outros, esse bem é a conservação da vida, e o contrário desse primeiro bem é a morte.

Ele afirmou também, na sua obra Leviatã, sucintamente que cada homem é diferente do outro e que a vida social é definida pelo egoísmo dessa diferença e pela convenção da convivência em grupo. O Estado em que esses indivíduos vivem não é algo natural, mas artificial, criado por esses indivíduos para alcançar da melhor forma os seus objetivos egoístas. Naturalmente os homens, devido ao seu egoísmo, viveriam numa guerra de todos contra todos, cada um tendendo a defender os seus próprios interesses. Daí as suas célebres palavras onde afirmou contundentemente que no estado natural o “homem é o lobo do próprio homem”.

Thomas Hobbes – Wikipédia, a enciclopédia livre
Thomas Hobbes

Rousseau é praticamente um antagonismo intelectual de Hobbes, pois ele afirma precisamente o contrário, nomeadamente a proposta que o homem faça um caminho de retorno à natureza, mas não um retorno ao seu primitivismo animal e embrutecido que Hobbes sugere, mas um retorno ao seu Estado Natural, que é o saber viver originário e feliz conforme as nossas necessidades inatas. Necessidades essas que foram corrompidas pela civilização, pelo intelectualismo e pelos comportamentos artificiais que a sociedade impõe aos indivíduos.

Foi um crítico obtundente e um notório adversário da sua contemporaneidade, pois condenava veemente os refinamentos sociais, as mentiras convenientes aceites pela comunidade, o exibicionismo intelectual, a suntuosidade cultural e a vaidosa necessidade da estima e simpatia das outras pessoas, considerado estas displicências como abusos que fazem com que percamos a nossa capacidade de reconhecer e julgar os valores humanos mais profundos, como a virtude.

Acrescentou nas suas obras que o homem natural procura simplesmente satisfazer as suas necessidades como sexo, alimentação e autopreservação sem se angustiar frente à morte. Partilhando a convicção de que quando age de forma agressiva, não o faz de forma desnecessária ou com crueldade, pois tem em si um sentimento natural de piedade para com os outros seres da natureza.

Jean-Jacques Rousseau – Wikipédia, a enciclopédia livre
Jean-Jacques Rousseau

Ao consultar as reflexões destes pensadores históricos verificamos novamente que uma afirmação coexiste com o seu contrário, portanto ainda há bastante espaço para se explorar nesta temática tão profunda. Porém, mais preponderante se revela indagar esta predisposição quando tentamos analisar a nossa conjuntura atual, pois além desta dúvida ontológica, temos também um complemento específico, nomeadamente a ação humana em momentos catastróficos e se é certo que um filme se revela significativamente mais rentável se representar as multidões como seres selváticos que no despoletar da calamidade não sabem refrear os seus ímpetos animais, também se revela igualmente acertado afirmar que os filmes não primam propriamente pelo esforço investigativo.

Relativamente a esse esforço podemos consultar a escritora norte-americana Rebecca Solnit, mais concretamente o seu livro “A Paradise Built in Hell”. Neste trabalho a escritora encabeçou uma investigação que não pretendia apurar os contornos de um raciocínio coletivo, mas sim as peculiaridades de uma emoção, nomeadamente a solidariedade e a empatia desmedida que caracteriza a espécie humana em episódios profundamente adversos e calamitosos como furacões, terramotos e até ataques terroristas. Evidentemente que estes acontecimentos não representam momentos desejáveis, porém acabam por fazer emergir o melhor do ser humano, pois concede um propósito comum. As inquietações quotidianas e as restrições da sociedade desaparecem, ocorre um fenómeno estranho de libertação e as pessoas revelam-se à altura da ocasião, sendo que a alienação social forçosamente desvanece.

Rebecca Solnit: 'I came to the idea of hope as an activist and writer of  history' | Rebecca Solnit | The Guardian
Rebecca Solnit

“What is this feeling that crops up during so many disasters?”

Solnit descreve esta sensação como “uma emoção mais gratificante do que a felicidade, mas profundamente positiva” que merece ser estudada, pois proporciona “uma extraordinária janela para o desejo e a possibilidade social”. A nossa responsividade aquando uma catástrofe permite vislumbrar o quão mais podemos ser e o quão mais poderia ser a sociedade em que vivemos. Consegue-se resumir facilmente a tese defendida neste livro com a seguinte frase:

“A recuperação deste propósito e a proximidade sem crise ou pressão” sem catástrofe, ou seja, ” a grande tarefa contemporânea do ser humano é conseguir aceder a esta energia sem a motivação consequente de uma calamidade “.

A autora estuda cinco desastres minuciosamente: o terramoto de 1906 e os incêndios em São Francisco, a explosão do navio de carga Halifax de 1917, o terramoto da Cidade do México de 1985, os acontecimentos do 11 de Setembro e o furacão Katrina. Evidentemente que estas catástrofes diferem em formas fundamentais, mas a resposta altruísta face a adversidade foi consistente.

Mais interessante e apropriado para esta crónica foram as conclusões relacionadas com a origem dos problemas consequentes nestes momentos calamitosos, pois em grande parte são provenientes das reações oficiais do governo, nas respetivas ações top-down que anulam os esforços coletivos improvisados. Solnit chega mesmo a considerar a comunicação social e outros fatores condicionados pela liderança administrativa como os principais responsáveis pela histeria coletiva induzida.

O estudo de Solnit sobre o pânico induzido pela elite em Nova Orleães depois do Katrina é a secção do seu livro mais absorvente e mais elucidativa. Os verdadeiros desastres ali, sugere ela, aconteceram em grande parte devido ao medo e às crenças não examinadas sobre a natureza humana. Mitos espalhados sobre coisas como a violação de crianças no Superdome da Louisiana, de pilhagens em massa, de multidões negras a ameaçar a propriedade branca. Rumores a retratar o pior comportamento foram repetidos sistematicamente na televisão, obscurecendo o que era realmente a vida na cidade.

10 anos após o furacão Katrina em imagens emocionantes | Exame
Furacão Katrina

Em todos os outros exemplos explorados consegue-se depreender sempre esta disposição de involuntariamente ou voluntariamente contribuir para engradecer o problema em vez de soluciona-lo efetivamente. Este estudo assume uma pertinência meritória de discussão devido à forma particular com que a elite tem agido no combate a esta alegada pandemia, e é essa reflexão que gostaria de sugerir ao leitor, pois parece-me essencial evoluir a questão ontológica para o domínio ético e em vez de perguntar “Será o homem bom ou mau?” revela-se mais preponderante atualmente trabalhar a questão: “Quem está no poder decisório é bom ou mau?”.

Afinal o que pretende a elite? Eis a questão

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