“Deves ansiar por uma coisa grande, suprema e muito próxima do estado de um Deus: ser inabalável”.
Séneca, Sobre a Tranquilidade da Mente

Os antigos filósofos prezavam acima de tudo a tranquilidade, que é um estado de espírito caracterizado pela ausência de emoções desconfortáveis tais como dúvida, medo, raiva, ansiedade, dor ou tristeza, e a presença de uma paz de espírito relativamente constante e uma alegria calma.  A capacidade de permanecer tranquilo, independentemente das condições externas da vida, é o Santo Graal da arte de viver, e de acordo com os antigos é a característica que resume o sábio filosófico. Porém cultivar esta capacidade não se revela tarefa fácil, uma vez que à nossa volta espreitam os inimigos da tranquilidade – somos constantemente forçados a enfrentar desafios na nossa vida pessoal, o caos social pode atacar a qualquer momento, enquanto a doença, o ferimento e a morte são possibilidades sempre presentes. Mesmo naqueles momentos em que as condições do mundo exterior aparentam estar calmas, o medo, o desejo, a ansiedade e a preocupação conseguem emboscar-nos de dentro das portas da mente. E assim, neste ensaio vamos explorar como cultivar uma tranquilidade inabalável no meio dos muitos desafios da vida.

“O que queremos descobrir, então, é como a mente pode sempre manter um rumo equilibrado e favorável, pode estar bem disposta para si própria, pode ser feliz ao contemplar a sua própria condição, e pode ter essa felicidade sem interrupção – como pode permanecer calmamente nessa posição, nunca se arrastando e sem nunca ir abaixo. Isto será tranquilidade”.
Séneca, Sobre a Tranquilidade da Mente

Para começarmos a nossa jornada para o cultivo de uma tranquilidade inabalável, devemos ter em conta a sabedoria de Epicteto:

“Algumas coisas dependem de nós e outras não dependem de nós”.
Epicteto, Enchiridion

As coisas que não dependem de nós, eram consideradas pelos estóicos como “externos”. Riqueza, bens materiais, relações, opiniões e ações de outras pessoas, saúde corporal, e o estado da sociedade, são os principais exemplos de exteriores, mas um exterior no sentido mais lato é tudo o que influencia a qualidade da nossa vida, mas que está para além do nosso controlo total. E como Epicteto explicou:

“O que é que admiramos? Os exteriores. Em que é que gastamos as nossas energias? No exterior. Será então de admirar que estejamos com medo e angústia?”  
Epicteto, Discursos

Para os estóicos não há nada de errado em preferir certos exteriores, e apreciá-los quando podemos. Pois, quem, no seu perfeito juízo, não preferiria a saúde à doença, a riqueza à pobreza, a liberdade à tirania, e uma boa vida social à carenciada. Contudo, em vez de nos limitarmos a desfrutar dos exteriores, exageramos associando a nossa tranquilidade, e por isso, colocamos o nosso bem-estar num estado precário. Pois, se nos faltam os exteriores que desejamos, ficamos frustrados, temerosos ou miseráveis. Se, por outro lado, conseguirmos assegurá-los, estamos ansiosos com a possibilidade de os perdermos. No entanto, em qualquer dos casos, a tranquilidade do sábio permanece fora de alcance.

“A perplexidade do homem está relacionada com o exterior; a sua impotência sobre o exterior. O que é que vou fazer? Como é que vai acontecer? Oxalá isto não aconteça, ou aquilo! Estes são os gritos de pessoas preocupadas com coisas que estão fora do seu controlo”.
Epicteto, Discursos

Quando a nossa tranquilidade está associada ao exterior, a nossa mente encontra-se sobrecarregada com preocupações do seguinte tipo: E se a companheira me deixar? E se eu fico sozinho para sempre? E se o meu chefe me despedir? E se o meu carro for danificado ou os meus bens forem roubados? E se os meus investimentos saírem frustrados? E se os meus amigos me excluem? E se os outros me insultam? E se a liberdade morre e a tirania aperta? E se eu ficar doente e morrer? Estes não são os pensamentos de um sábio tranquilo, mas de um escravo com muitos senhores.

“Se se apegar ao exterior, será inevitavelmente obrigado a subir e a descer de acordo com a vontade do seu mestre. E quem é o teu mestre? Quem eventualmente tiver poder sobre as coisas que estás a tentar ganhar ou evitar”.
Epicteto, Discursos

Se a nossa tranquilidade estiver vinculada a uma relação, então a outra pessoa é o nosso mestre. Se depende da riqueza, então somos um escravo do dinheiro e dos bens e o nosso patrão ou a empresa para a qual trabalhamos é o nosso amo. Se a nossa tranquilidade está dependente da boa opinião dos outros, então cada homem e mulher na rua é o nosso senhor. Se está dependente de viver numa sociedade livre, então quem quer que seja um tirano é nosso amo.

“…criatura infeliz, escrava que és, escrava dos teus semelhantes, escrava das circunstâncias e escrava da vida (pois a própria vida é escravidão se a coragem de morrer estiver ausente)”.
Séneca, Cartas de um estóico

Em contraste com o resto de nós, o sábio é único na medida em que só ele é livre – ele não tem mestres externos. Pois o sábio compreende a futilidade de subordinar o seu bem-estar a condições externas e, no processo, perder o controlo da sua tranquilidade. 

Ao desprender-se dos exteriores, o sábio é capaz de os desfrutar quando em sua posse, mas ainda consegue manter-se tranquilo se lhe faltarem ou se lhe forem tirados. O sábio atinge esta tranquilidade permanente cultivando o domínio da única coisa no mundo que os estóicos consideram como estando totalmente sob o nosso controlo – isto é, os nossos poderes de julgamento e arbítrio de escolher.

“Pois a escolha não pode ser dificultada ou prejudicada por nada que esteja fora da esfera da escolha, mas apenas pela própria escolha. Portanto, se nós…recordarmos que nada, exceto o nosso próprio julgamento, é capaz de nos causar perturbação ou confusão, juro-vos por todos os deuses que fizemos progressos”.
Epicteto, Discursos 

Os estóicos classificaram a escolha como o poder mais impressionante que os humanos possuem, e Epicteto considerou-a como sendo o presente que partilhamos com os deuses. A qualidade da nossa vida, segundo os estóicos, é mais um produto das escolhas que fazemos do que das coisas que nos acontecem. A maioria de nós acredita que quando algo ocorre é o próprio acontecimento que é bom ou mau, mas não é assim que ensinam os estóicos. A bondade ou a maldade do que nos acontece não é intrínseca aos próprios acontecimentos, mas sim à forma como escolhemos interpretar e julgar o que nos acontece. Ou como escreveu o filósofo francês Montaigne, do século XVI:

“Um antigo ditado grego sustenta que somos atormentados não pelas coisas em si, mas pelas opiniões que temos sobre elas. Seria uma grande vitória para o alívio da nossa condição humana miserável se essa afirmação pudesse ser provada sempre e em todo o lado como verdadeira. Pois se os males não têm meios de entrar em nós a não ser através dos juízos que fazemos deles, pareceria então estar ao nosso alcance rejeitá-los ou transformá-los em bem”. 
Montaigne, Ensaios

O problema é que não exercemos suficientemente os nossos poderes de escolha de uma forma consciente e voluntária, em vez disso consentimos inconsciente e quase automaticamente que os guiões sociais e os preconceitos cognitivos determinem a forma como interpretamos os acontecimentos da nossa vida. As coisas que nos acontecem e que a sociedade considera más, nós interpretamos reflexivamente como más, e vice-versa no que diz respeito ao bem. Em contraste, quando algo que a sociedade considera “mau” acontece ao sábio, em vez de inconscientemente se conformar o sábio, reflete, e depois opta por interpretar o evento de uma forma que elimina qualquer potencial angústia, ou então pensa numa forma de transformar a situação num “bem”. Se p sábio for despedido; agora tem mais tempo para desfrutar da vida, encontrar uma carreira melhor ou perseguir uma paixão. Os amigos do sábio abandonam-no ou a sua companheira deixa-o; agora pode reinventar-se e desfrutar da sua solidão. Alguém insulta ou ridiculariza o sábio; que grande oportunidade para o sábio testar a sua autoconfiança.

“Se qualquer coisa externa lhe causar angústia, não é a coisa em si que o perturba, mas o seu próprio julgamento sobre ela. E sobre isto tendes o poder de a eliminar prontamente”. 
Marcus Aurélio, Meditações

Diógenes o Cínico, que Epicteto considerava ser um dos poucos indivíduos a alcançar o estado de sábios, viveu em plena consonância com a verdade de que estamos angustiados não com as coisas que nos acontecem, mas com as nossas opiniões sobre elas. Por exemplo, um dia, o único escravo de Diógenes, Manes, fugiu. Na antiguidade, os escravos eram considerados bens preciosos e por isso, para qualquer outra pessoa, isto teria sido uma razão para ficar terrivelmente perturbado. No entanto, em resposta à notícia da fuga de Manes, Diógenes optou por interpretar o acontecimento de uma forma que manteve a sua tranquilidade, como se diz ter observado: 

” Pouco mérito me traria se Manes pudesse viver sem Diógenes e Diógenes não pudesse viver sem Manes”.

Séneca interpretou esta anedota como prova de que Diógenes tinha cortado a ligação entre a sua tranquilidade e o exterior e cultivado o controlo total dos seus poderes de escolha, alcançando assim a verdadeira liberdade.

‘Trate dos seus próprios assuntos, fortuna, Diógenes agora não tem nada seu: o meu escravo fugiu – não, eu ganhei a minha liberdade, eu fugi’.
Séneca, Sobre a Tranquilidade da Mente

 

Esta capacidade de escolher interpretar os acontecimentos e a perda dos exteriores de uma forma que mantenha a tranquilidade foi também exemplificada pelo fundador do estoicismo, Zeno. Como Séneca relatou:

“Quando o nosso mestre Zeno recebeu a notícia de um naufrágio e ouviu que todos os seus bens tinham sido afundados, disse: ‘Esta é a ordem da Fortuna para que eu pratique filosofia com menos embaraços”.
Séneca, Sobre a Tranquilidade da Mente

Afastarmo-nos do exterior e alcançar uma tranquilidade inabalável através do exercício dos nossos poderes de escolha, é mais fácil dizer do que fazer. No entanto é possível, pois existem exemplos de indivíduos ao longo da história que aguçaram os seus poderes de escolha a um nível que lhes permitiu interpretar até o maior dos medos – uma morte iminente, preservando a tranquilidade.

“Os homens são perturbados não pelas coisas que acontecem, mas pelas suas opiniões sobre essas coisas. Por exemplo, a morte não é nada terrível; pois se fosse, também se teria afigurado assim mesmo para Sócrates. Muito pelo contrário, a opinião de que a morte é terrível – isso sim, é o que é terrível. Portanto, quando somos impedidos, perturbados ou prejudicados, nunca culpemos os outros, mas sim nós próprios – ou seja, as nossas opiniões”.
Epicteto, Enchiridion

 

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