“If we don´t believe in freedom of speech for those we despise, we don´t believe in freedom of speech at all”
 Noam Chomsky

Esta citação de Chomsky revela-se de extrema importância no que diz respeito ao nível valorativo da liberdade de expressão. Enquanto a liberdade de expressão não for considerada como um princípio / valor antes de um direito, o próprio conceito de liberdade nunca poderá ser percebido, muito menos respeitado e cumprido. O princípio da liberdade de expressão existe para proteger todo o tipo de opinião, desde a mais consensual à mais controversa e minoritária. Uma sociedade onde apenas exista a opinião maioritária e que silencie vozes dissidentes ou que estão à margem da sociedade, não poderá ser considerada uma sociedade verdadeiramente livre, uma vez que esse direito não é universal. Se a história da humanidade foi capaz de mostrar algo, foi que é muitas vezes impossível ter a certeza absoluta de algo, pelo que terá sempre que existir espaço para um diálogo constante que permita as sociedades evoluírem acerca dos seus pressupostos deixando as suas ideias abertas a críticas.

Stuart Mill percebeu este princípio fulcral para a vitalidade das sociedades, ao apresentar a noção de “tirania das maiorias” (“On Liberty” 1859). Se uma maioria puder censurar indivíduos com opiniões controversas ou minoritárias uma sociedade será tirânica: Tal como outras tiranias, a tirania da maioria foi a princípio, e ainda é vulgarmente, mantida através do medo, operando sobretudo através dos actos das autoridades públicas. Contudo, reflectindo, as pessoas perceberam que quando a sociedade é ela mesma o tirano – a sociedade colectivamente, acima dos indivíduos separados que a compõem – os seus meios de tiranizar não são restritos aos actos que ela pode fazer pelas mãos dos seus funcionários políticos. A sociedade pode executar, e executa de facto, os seus próprios mandatos: e se ela estabelece mandatos errados e não certos, ou quaisquer mandatos em coisas nas quais não se deveria intrometer, ela pratica uma tirania social mais formidável do que qualquer tipo de opressão política, na medida em que, embora não sustentada usualmente por tais penalidades extremas, deixa menos meios de escape, penetrando muito mais profundamente nos detalhes da vida e escravizando a própria alma”(Mill, 1998:8-9)

Uma sociedade onde apenas impere uma noção/conceito ou ideia oficial ou concordante e em que não haja espaço para uma livre circulação de ideias e de debate, é uma sociedade estagnada. Como Mill veio a evidenciar, uma ideia que seja aceite como verdade absoluta e que nunca venha a ser testada ou defendida transformar-se-á  num dogma:
“Mesmo que uma opinião recebida seja não apenas verdadeira, mas toda a verdade; a não ser que ela seja, e seja actualmente, contestada vigorosa e honestamente, ela será mantida, por muitos dos que a recebem, à maneira de um preconceito, com pouca compreensão ou sentimento dos seus fundamentos racionais. E não apenas isso, mas o significado da própria doutrina correrá o risco de ser perdido, ou enfraquecido, e privado do seu efeito vital no carácter e na conduta: tornando-se o dogma uma mera profissão de fé formal, ineficaz para o bem, mas tapando o fundamento, e impedindo o crescimento de qualquer convicção real e sentida a partir da razão e da experiência pessoal» (Mill, 1998: 59).”
Com isto, Mill quis mostrar que uma ideia , princípio ou “facto assumido”, que não seja permitido ser questionado, mesmo que este seja verdade, sem contestação nunca poderá ser fortalecido, podendo ser considerado mera superstição.

Indivíduos que estejam seguros acerca da exactidão de uma determinada posição, opinião ou ideia que possuam, serão beneficiários de uma troca de ideias ou argumentos contrários aos seus; só assim poderão perceber melhor a sua própria posição e fortalecê-la. Contrariamente, se uma certa ideia for generalizadamente e oficialmente aceite como verdadeira nunca terá que ser defendida e, portanto, fortalecida.

 

Deste modo, é com alguma estranheza que, no legítimo combate à desinformação, tenham aparecido meios de comunicação que se declararam como organismos oficiais de reposição de verdade, usualmente conhecidos como “fact checkers” que se colocam na posição de detentores formais da veracidade de informação que deve ser veiculada.

Qualquer organização composta por seres humanos, é falível e, portanto, nunca estará livre de erros. Seja a reprodução de erros como tendo sido formalmente assumidos como verdade, enviesamentos ou até em casos mais graves conflitos de interesse.

Aquando da evolução da pandemia do Covid 19 em Portugal, a 22 de Março, a Diretora da Direção Geral da Saúde, mencionou que as pessoas não deveriam usar máscaras para prevenção do vírus, uma vez que estas apenas criariam,  uma falsa sensação de segurança, tendo num espaço de poucas semanas voltado com a palavra atrás e passado a recomendar o uso de máscara como meio de proteção para o vírus. Não tendo a ciência mudado neste curto espaço de tempo, poderemos considerar, que eventualmente as declarações iniciais da responsável pela DGS terão servido como forma de prevenção a uma procura de máscaras acima da oferta existente, que levasse a quebras de stock onde estas fossem mais necessárias ou apercebeu-se da utilidade desta “falsa sensação de segurança” para o cidadão comum. Não questionando esta opção de estratégia política, vale, no entanto, a pena recordar o subdiretor de informação da SIC e director do polígrafo que, apresenta o seu programa como ferramenta de apuramento da verdade dos factos, contra a difusão de falsidades, manipulações e demais exercícios de desinformação, a dar a cara por uma mentira propagada pelo governo, reproduzindo exatamente a mesma mensagem inicial feita pela DGS acerca do uso de máscaras.

Sendo o objetivo de qualquer jornalista, a busca pela verdade através da prestação de um serviço de informação imparcial ao público; sabendo que, até certo ponto é impossível fugir a enviesamentos organizacionais, individuais ou simplesmente à falibilidade humana, como poderemos conceber de forma absoluta que uma determinada entidade ou indivíduo se declare oficialmente dono legítimo dessa mesma alegada verdade? Como é que, censurando informação alegadamente falsa e contrária ao que é “oficialmente” anunciado como verdade, e sem um verdadeiro escrutínio público ou debate de ideias, podemos verdadeiramente distinguir o que é verdade do que é dogma ou ortodoxia?!

O caso histórico da difusão da teoria heliocêntrica por Galileu, que levou ao seu julgamento em 1616, é um exemplo claro de uma ideia que era contrária à ortodoxia da altura, imposta pela então autoridade da “verdade” estabelecida, a inquisição. Galileu foi forçado a não divulgar a sua teoria e foi condenado. Este exemplo histórico, tal como o anteriormente mencionado, oferece-nos três conclusões que poderão ser tiradas acerca da complexidade e importância da existência da liberdade de expressão, bem como das consequências das suas limitações:

 1 – discurso censurado é discurso que prolifera

2 – uma censura pode estar a encobrir uma grande verdade

3 – o preço a pagar pela liberdade de expressão absoluta existe, mas é bem menor do que a alternativa – a tirania da maioria.

Eventualmente, apenas com um debate de ideias sério se fortalece uma determinada ideia considerada verdade ou se refuta esta. Se o leitor imaginar uma situação em que não se tratasse de um caso de saúde pública ou do conhecimento do mundo físico (ambos de extrema importância), mas de eleições? Poderemos de facto confiar a 100% em fact checkers como órgãos da verdade?!

No clássico “1984” de George Orwell, o autor relata-nos um pesadelo distópico no qual o “ministério da verdade” está envolvido com a comunicação social, indústria do entretenimento, artes, livros educacionais etc. e em que o seu objetivo é redesenhar a história e os factos conforme a sua conveniência e de acordo com a ortodoxia do partido que governa. Nele, o Big Brother faz uma previsão que se revela errada, mas na qual, os funcionários do ministério da verdade tem que moldar essa mesma previsão de forma a torná-la “correcta”.

Assumindo à partida um determinado órgão como detentor da verdade, não haverá de forma semelhante um eventual perigo do polígrafo ou qualquer fact checker também se transformar numa espécie de ferramenta de propaganda ao serviço do governo ou de qualquer tipo de conflito de interesse? Sendo todas as instituições compostas por indivíduos, que são por natureza falíveis, não será a existência de um qualquer critério para evitar a propagação de determinadas ideias necessariamente arbitrário, mecânico e, portanto, anti-humano e consequentemente contrário ao progresso?!

Se é verdade que as redes sociais vieram democratizar a circulação de informação, por consequência colocou as pessoas vulneráveis à recepção e partilha de desinformação, também é verdade que este perigo poderá constituir um mal menor com o qual teremos que saber viver; pois assim como a liberdade de expressão acarreta os seus perigos, a não existência desta constitui um potencial perigo muito maior: a instituição de dogmas, a ortodoxia, a censura e falta de liberdade para pensar.

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Goncalo Alves da Cunha
Admin
Goncalo Alves da Cunha
3 anos atrás

Encontrei isto recentemente e considerei pertinente na continuidade deste diálogo, junto também insiro o link para a respetiva publicação bem como o nome do autor Mike Elias:

https://www.ribbonfarm.com/2020/09/03/wittgensteins-revenge/

Wittgenstein’s Revenge

We treat facts like they’re “atoms of truth” — small, indivisible, solid — and if you add them up, you get “big truths.”
But like atoms, facts are mostly empty space, and the closer we examine them, the less solidity we find.

It may be time to graduate from the metaphor of facts completely, to a metaphor that reflects a healthier relationship between truth and people.

Problem 1: Facts do not objectively exist.

We think of ‘facts’ as being somewhat equivalent to data — they’re observations, which in theory anyone could verify. 
But observation is just one of three essential ingredients required to make a Fact.
The other two are:
1) Context omission, and
2) Trust, in the one omitting the context.

(…)

Problem 2: Facts do not persuade.

“Facts inherently persuade” is the myth of our era.
While many of us realize this intellectually, society’s response to fact-skepticism still resembles the redneck response to meeting a non-English speaker: “Just say the same thing again, slower and louder.”

Ironically, “the fact that facts don’t persuade” has yet to really sink in.

The verdict is clear: Research on numeracycult behaviorscience denial, and scientific suppression shows people tend to be far more concerned with the social-psychological and identity implications of a proposition than with its truth value. (We can discuss why you shouldn’t blame the public or bemoan this tendency in another essay.)

If the future of humanity depends on persuading people to be rational, we must take a rational approach to persuasion, and “just give them the facts — slower, harder, and with mustard” decidedly isn’t it.

The future of humanity does depend on persuading people to be rational. And in the same way nobody cares who first spotted the Titanic’s fateful iceberg, nobody will care who “was right about the facts” if we all end up underwater.

“Being right about the facts” in 2020 is merely a fashion statement — like wearing a mink coat on the Titanic. Who gives a fuck? Steer the god-damned ship.

Problem 3: The metaphor of Facts is epistemically degenerate. 

The metaphor of Facts is anti-Science.
Science holds all knowledge as tentative and uncertain. 
While people tend to accept this in theory, the metaphor of Facts connotes certainty and permanence, and inspires a fervor often indistinguishable from religious fundamentalism.
The metaphor of Facts thus creates a countercurrent to the spirit of science in public discourse and everyday life.

The metaphor of Facts encourages binary thinking: “I’m right, you’re wrong, period.”

  • “Sex is a sin.” No, it’s more complicated than that.
  • “Grains are healthy.” No, it’s more complicated than that.
  • “X is a fact.” No, it’s more complicated than that.

(…)

Problem 4: The metaphor of Facts is incompatible with freedom of speech.

The inevitable result of the belief in facts is censorship.

Like fact-based crusades, fact-based censorship is already widespread on social media platforms. Censorship is the default — the first line of defense — against doubt and uncertainty in a fact-based world.

How humanistic can the notion of Facts be, if it produces censorship at the first sign of stress?
Does “being right” make thought-policing right?
Ultimately we must decide what’s more important — freedom of speech, or the metaphor of Facts.

(…)

Recomendo vivamente atalhar por aqui depois da leitura deste artigo.

Muito bom texto, parabéns Abel