“ A História repete-se sempre, pelo menos duas vezes” disse Hegel. Marx acrescentou “a primeira como tragédia a segunda como farsa”

Quatro anos volvidos das eleições americanas, cujos resultados mais chocaram os incautos, embora com mais cuidado, podemos verificar a mesma segurança nas previsões de 2020 por parte dos demais especialistas, comentadores políticos, sondagens etc.: “Trump não irá ganhar a Casa Branca”. Se Hegel tinha razão quanto à repetição da história, Marx acrescentou que a primeira repetição ocorre “…como tragédia a segunda como farsa”. Independentemente das demais considerações pessoais quanto ao resultados das eleições americanas de 2016 terem sido tragédia ou não, atendendo as surpresas eleitorais que surgiram nos últimos anos nas democracias ocidentais, pode-se afirmar com alguma segurança que se tornou difícil fazer previsões acertadas. Deste modo, deveria haver mais ponderação relativamente a essas mesmas previsões ou pior em ostracizar uma base eleitoral que se sente abandonada, sem voz e que guarda o seu voto como grito de protesto. Foi precisamente isso que não foi tido em conta em 2016 e que poderá voltar a acontecer já amanhã.
Grande parte dos americanos que votaram em Trump, não queriam um presidente sem filtros políticos, grosseiramente frontal, arrogante, com ego inchado, pouco ortodoxo no modo de fazer política, simplesmente não queriam Hillary que representava uma elite política de Washington corrupta, descredibilizada, desgastada, do “sistema”. Entre uma elite milionária da política e uma elite americana milionária, que durante muitos anos foi vista como símbolo do “american dream”, ideia fortemente encalcada no arquétipo americano, os americanos preferiram a segunda. Além disso, o voto em Trump foi um grito de revolta contra o globalismo financeiro, uma revolta social que fez com que, pela primeira vez desde 1988, estados do “Rust Belt” – da classe trabalhadora esquecida, tradicionalmente democrata votassem de forma clara no candidato republicano. Estes votos , foram os votos da revolta económica e da desigualdade social, contra o fecho e deslocação internacional de grandes empresas e fábricas de manufatura para o exterior, contra a desertificação de cidades da classe trabalhadora, outrora prósperas em emprego.;  Ou como disse o realizador Michael Moore em 2016: “the biggest fuck you in human history”

Quem ouve os analistas políticos, raramente encontra uma explicação mais profunda que explique o “fenómeno Trump” , que vá além de uma análise superficial que não hesite em conotar os votos em trump, como sendo votos meramente de motivação racial, étnica ou nacionalista, vindos de gente iletrada, ignorante e sem educação; vendo mais a fundo, o espectador mais atento estranha como é que estados que não hesitaram em votar no primeiro presidente negro da história dos EUA em 2008 e o reelegeram em 2012, passaram para Trump em 2016. Porém, se dúvidas restarem quanto a este “fenómeno político” o próprio estratega político de Trump na campanha de 2016, Steve Bannon, na manhã das eleições fez questão de explicar porquê é que o “deplorable” foi eleito: “Trump é o chefe de uma revolta populista… O que Trump representa é uma restauração – uma restauração do verdadeiro capitalismo americano e uma recusa contra o socialismo financiado pelo estado. As elites guardaram o melhor do bolo e deixaram o pior para os americanos da classe média trabalhadora. Trump percebeu-o e o povo americano também.”  [i]

[i] Joshua Green, Devil´s Bargain – Steve Bannon,Donald Trump and the Storming of the Presidency

A verdade é que a base eleitoral de Trump pouco ou nada quis ou quer saber dos seus modos ou falta deles. Interessa-lhes a estabilidade social, a possibilidade da miragem do “sonho americano” e até ao rebentar da pandemia, os números estavam a favor de trump, com a taxa de desemprego a atingir uns históricos 3,5% até ao primeiro trimestre do ano corrente. Não tivesse a pandemia chegado ao EUA e provavelmente Trump já estaria a regozijar-se no twitter com a sua reeleição.

Não obstante a má gestão da pandemia por parte da administração Trump, poder ser um factor em favor de Biden, no qual o democrata está a apostar as fichas quase todas; mesmo que esta narrativa encontre identificação por parte de eleitores das grandes metrópoles americanas como Nova Iorque e Los Angeles, com grande densidade populacional, eventualmente não será uniforme na federação norte americana, uma vez que o imaginário coletivo do povo americano está muito ligado à ideia de trabalho, escalabilidade social e liberdade individual, pelo que medidas altamente restritivas, que estão a ser aplicadas com mais ênfase em cidades governadas por democratas para estancar a pandemia, poderão contribuir para o aumento das desigualdades sociais e um sentimento de revolta com a classe política.
De igual modo, a falha do partido democrata em condenar de forma inequívoca os Antifa, os motins que varreram as cidades americanas, após a morte de George Floyd, motins estes que deixaram muitos negócios familiares destruídos, que tiraram o “ganha-pão” e em alguns casos a vida a muitos americanos, minorias incluídas, poderá fazer com que eleitores indecisos que apenas querem viver as suas vidas em paz e voltar à normalidade votem em Trump, que faz questão de apostar numa narrativa em que ele alegadamente representa a “Lei e Ordem”, o retorno à “bonança depois da tempestade”. Resumidamente, pode sair o tiro pela culatra aos democratas e o ressentimento que em parte motivou a surpresa de 2016, poderá ser uma vez mais um factor de motivação de alteração de voto e deslocação em massa às urnas. Embora as sondagens estejam a dar a vantagem a Biden, passados quatro anos será que a lição ficou aprendida? Será que Joe Biden é percecionado pelos eleitores americanos de forma muito diferente do que Hillary foi em 2006?

Joe Biden leva 47 anos de vida pública e isso poderá não jogar a seu favor, pois quem eventualmente estiver indeciso em quem votar poderá, tal como aconteceu em 2016, olhar para Biden como alguém do “sistema”, alguém que leva quase meio século de vida pública na qual poderia ter feito algumas das coisas que agora promete, essa experiência política poderá dar-lhe mais descrédito do que o seu contrário em boa parte dos eleitores, poderá colar-lhe a imagem de um político desfasado e distanciado da realidade do cidadão comum americano.

Por último, o historial político de Biden não joga a seu favor, tanto em política externa como interna. Goste-se ou deteste-se Trump e das suas políticas, este cumpriu quase todas as suas promessas eleitorais que lhe serviram de bandeira e a história recordá-lo-á como o Presidente menos intervencionista e belicista dos últimos 40 anos; A juntar a isto, Trump com a sua imprevisibilidade retórica e diplomática, não só conseguiu reduzir a escalada de tensões nucleares com a Coreia do Norte, como ainda conseguiu mediar acordos de paz entre Israel e o mundo árabe, de igual modo conseguiu formalizar a normalização de relações entre Sérvia e Kosovo , poucos meses antes das eleições.
 Biden tem no seu currículo mais recente, a vice presidência da administração Obama. Embora Obama tenha carisma, a credibilidade da personalidade política e a boa imagem propagada pelos media, que pode ser favorável a Biden, a nível de política externa tem um péssimo registo, registo este que ocorreu enquanto Biden era vice presidente. Joe Biden que nas primárias democratas foi acusado, por aquela que é agora a sua Vice, de histórico de assédio e de ter colaborado com segregacionistas em políticas que desfavoreceram minorias negras, mais especificamente contra o “busing” escolar, políticas estas que desfavoreceram aqueles que Biden diz agora representar. Juntando a tudo isto, apesar da tentativa dos gigantes tecnológicos de abafar a investigação do New York Post acerca do alegado tráfico de influências e corrupção da família Biden , esta matéria foi muito explorada por Trump no último debate e pelo partido republicano, o que poderá levar os indecisos a não votar em Biden, tal como aconteceu com Hillary em 2016 aquando das revelações da Wikileaks acerca das actividades obscuras da fundação Clinton. 

Por outro lado, se Trump parece ser um “grumpy old man” desbocado e grosseiro, que tira credibilidade à imagem típica da personalidade política americana, Biden faz-se apresentar como o homem moderado da sala, politicamente experiente, que vai tomar as rédeas dos democratas e controlar a ala radical do partido, que vai tomar o controlo da pandemia deixada por Trump e unificar um país que está politicamente polarizado. E se Trump é muita coisa, é de facto uma figura polarizadora, para alguns o homem “errado” na altura certa, para outros um incontinente verbal que descredibiliza a política americana no panorama da cooperação e das relações internacionais, mas se Biden conseguiu de facto transparecer para os eleitores americanos a ideia de união do país, do centrista moderado, da figura conciliadora que constrói pontes e não muros, então poderá ser eleito o 46º presidente da república dos EUA.
Se tudo isto, corresponde ao que foi percecionado pela maioria do colégio eleitoral? Se existe outra vez uma maioria silenciosa ? Ninguém sabe, mas o que se sabe, é que na política, tal como na vida, independentemente dos especialistas, analistas ou sondagens em questão, as previsões não valem mais do que aquilo que são.

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