Na nossa era profundamente caracterizada pela predominante ansiedade e constante vitimização, a coragem afigura-se como uma atitude cada vez mais rara, representando mesmo talvez a maior carência da contemporaneidade. Pois, quem entre nós é que não poderia criar uma longa lista de coisas que faria se fosse mais corajosa? Quantas vezes nos dececionámos ao sucumbirmos aos nossos medos em vez de forjar medidas que poderiam criar uma vida melhor? Mas a verdade, por vezes fatídica e outras vezes próspera, é que o nosso futuro não precisa forçosamente de espelhar o nosso passado, pois a coragem é uma habilidade que pode ser cultivada e, acima de tudo, esta habilidade emerge da forma como nos relacionamos com as nossas emoções. Agir com coragem exige que deixemos de olhar as emoções angustiantes como barreiras a obstruir a ação e, em vez disso, aprendamos a prosseguir na vida mesmo com a presença do medo, ansiedade, culpa ou vergonha.

Para começar, precisamos de delinear o papel que as emoções desempenham numa vida humana, sequentemente precisamos de distinguir entre emoções adaptativas e emoções mal-adaptadas. Pois, através deste quadro de compreensão conseguimos alumiar a razão que fundamenta as responsividades típicas das pessoas nas respetivas relações com as emoções angustiantes que promovem a cobardia e porque é necessária uma alternativa.

“As emoções servem papéis críticos na direção da nossa atenção, moldando as nossas perceções, organizando a nossa memória e motivando o nosso envolvimento ativo na aprendizagem que a vida incessantemente exige de nós”.
Michael Mahoney, Psicoterapia Construtiva

Michael J Mahoney
Psicoterapia Construtiva

Tem havido uma tendência persistente na história das ideias, que se estende até Platão, que caracteriza as emoções como os elementos indisciplinados e indomesticáveis de uma vida humana. As nossas emoções, de acordo com esta perspetiva, perturbam a nossa tranquilidade e impedem a nossa capacidade de pensar racionalmente. Mas esta perspetiva é unilateral e ignora o papel prospetivo das emoções. Pois as nossas emoções, quando funcionam corretamente, ajudam-nos a adaptar-nos ao nosso ambiente, fornecem informação sobre o bom e o mau da nossa vida, e direcionam a nossa atenção a uma velocidade que muitas vezes ultrapassa a da nossa mente cognitiva. Embora todas as emoções nos possam fornecer informações, são muitas vezes as emoções mais angustiantes que estão repletas das particularidades mais importantes. O medo pode concentrar-nos numa ameaça, a ansiedade pode alertar-nos para o facto de que estamos a tomar um caminho errado na vida, enquanto a culpa e a vergonha podem sinalizar que o nosso comportamento não está de acordo com a nossa bússola moral. Ou como Leslie Greenberg explica em Emotion-Focused Therapy:

“A função normal da emoção é processar rapidamente informações situacionais complexas, a fim de fornecer feedback à pessoa sobre a sua reacção e preparar a pessoa para tomar medidas eficazes”.
Leslie Greenberg, Terapia Centrada na Emoção
Leslie Greenberg, PhD, é professor e investigador da York University de Toronto (Canadá) e diretor da York University Psychotherapy Research Clinic. Assina em coautoria as principais obras sobre o modelo terapêutico designado Terapia Focada nas Emoções.
O advento da perspetiva da emoção como recurso adaptativo e sistema de significado - e não como algo de que nos temos de libertar de forma catártica, ou que temos de modificar ou corrigir pelo pensamento - e da compreensão do seu papel nos relacionamentos humanos e na psicoterapia produziu uma mudança radical no campo da psicoterapia.

As nossas emoções, por outras palavras, são cruciais não só na nossa capacidade de sobreviver, mas também de florescer e prosperar. Mas onde a maioria de nós luta frustrantemente é na nossa incapacidade de lidar com aquilo a que se chama emoções mal-adaptadas. Porque por vezes as nossas emoções podem assumir uma vida própria e em vez de sinalizarem formas adaptativas de interagir com o nosso ambiente, enganam-nos e impelem-nos a comportar-nos de formas que diminuirão o nosso bem-estar. Estas emoções mal-adaptadas, como explica Greenberg:

“…já não ajudam a pessoa a lidar construtivamente com as situações que a provocam; pelo contrário, interferem com o seu funcionamento eficaz. Estas respostas emocionais envolvem geralmente respostas racionalmente antagónicas, com base em experiências anteriores, muitas vezes traumáticas”.
Leslie Greenberg, Terapia Centrada na Emoção

As emoções mal-adaptadas são os pequenos demónios que desviam a nossa vida do rumo. São as emoções que dão origem a fobias, distúrbios de ansiedade, problemas de raiva, depressão, e a níveis distorcidos de culpa e vergonha. A maioria das pessoas tenta lidar com tais emoções angustiantes de uma de duas maneiras: através do raciocínio ou através da supressão. Ambos os métodos, contudo, são antitéticos ao culto da coragem, pois tratam as emoções angustiantes como estados que devem ser ultrapassados e superados, antes de se poder tomar medidas inclusivas e explorar as possibilidades que a vida possa presentear. Mas o que piora a situação é que ambas as abordagens tendem a falhar na concretização do seu propósito de nos libertar do domínio da emoção mal-adaptada.

O raciocínio com as nossas emoções é frequentemente convocado quando estamos cientes do facto de que as nossas emoções mal-adaptadas não estão de acordo com a realidade da nossa situação. Nesses momentos, pode parecer razoável tentar argumentar com as nossas emoções na esperança de que a nossa mente cognitiva possa exercer controlo sobre elas e libertar-nos para avançarmos sem entraves pela sua presença. Mas as emoções raramente são controláveis por atos de pura vontade, nem são passíveis de ser controladas apenas pelo poder do pensamento. De facto, é mais provável que uma emoção intensa se sobreponha à nossa capacidade de pensar claramente, do que um pensamento claro se sobreponha a uma emoção intensa, ou, como Alexander Pope afirmou:

“The ruling passion, be it what it will, the ruling passion conquers reason still.”
Alexander Pope
Alexander Pope foi um dos maiores poetas britânicos do século XVIII.

Atendendo ao facto de que os nossos pensamentos raramente nos libertarão de um distúrbio de ansiedade, fobia, ou outras formas de emoções mal-adaptadas, muitas pessoas consequentemente desistem desta abordagem e, em vez disso, recorrem à supressão emocional para obter o almejado alívio. Se não conseguirmos derrotar estes estados emocionais com os nossos pensamentos, talvez possamos forçá-los a sair da consciência. A supressão até pode funcionar superficialmente, mas o preço a pagar revela-se tremendamente dispendioso, pois como o psicólogo Alexander Lowen explica no seu livro Fear of Life (Medo da Vida):

“…suprimir um sentimento não o faz desaparecer; apenas o empurra mais profundamente para o inconsciente. Com esta ação apenas interiorizamos e enraizamos o problema”.
Alexander Lowen, Medo da Vida
Alexander Lowen Desenvolveu a psicoterapia mente-corporal conhecida como análise bioenergética com o seu então colega John Pierrakos.
Medo da Vida Caminhos da realização pessoal pela vitória sobre o medo

A interiorização dos nossos estados emocionais apenas desaloca os seus efeitos. Em vez de nos sentirmos zangados, podemos desenvolver tensão muscular crónica ou enxaquecas. Em vez de sentir ansiedade, podemos desenvolver sintomas corporais, tais como problemas de digestão ou incapacidade de dormir. Mas um outro problema com a supressão é que ela cria uma nova obstrução ao ato corajoso. Podemos já não sentir a emoção, mas a doença psicossomática que criámos no processo tornar-se-á muitas vezes a nossa nova desculpa para permanecer estagnado. Em vez de dizermos a nós próprios que devemos superar o nosso medo ou ansiedade, antes de tomarmos medidas corajosas, dizemos agora a nós próprios que devemos curar o que aflige o corpo.

Mas se o raciocínio com emoções mal-adaptadas se revelar ineficaz, e se a supressão apenas distorce o problema, então qual é a alternativa? Como podemos relacionar-nos com emoções angustiantes de uma forma que promova o culto da coragem? Uma ferramenta que nos pode ajudar a este respeito é a rotulagem emocional. A rotulagem emocional implica reparar na presença de uma emoção, e em vez de argumentar contra ela ou tentar suprimi-la, aceitámo-la, e rotulamo-la internamente. Dizemos a nós próprios: “Sinto-me ansioso”, “sinto medo” ou “estou a sentir raiva”. Isto pode parecer um ato trivial, mas como Greenberg explica:

“Um corpo crescente de investigadores revelou que rotular uma emoção (ou seja, pôr os sentimentos em palavras) ajuda a regular o efeito para baixo. Assim, quando se associa a palavra “zangado” à emoção experimentada, há uma resposta diminuída na amígdala. Os benefícios da rotulagem do efeito vão assim para além dos conhecimentos reais que se obtêm ao saber o que se sente, porque o próprio ato de rotular diminui efetivamente a excitação”.
Leslie Greenberg, Terapia Centrada na Emoção

Depois de rotularmos a nossa emoção estaremos melhor posicionados para avaliar o que a emoção nos está a sinalizar para fazer. Se a emoção for adaptável e nos apontar numa direção clara, então teremos poucos motivos para desobedecer ao que nos diz, todavia as questões não se revelam tão simples para as emoções mal-adaptadas. Pois ao contrário de uma emoção adaptativa, uma emoção mal-adaptada revela-se desaconselhável, logo o comportamento à qual ela apela é algo a evitar, pelo menos é esta a consideração consensual. Precisamos, no entanto, de expandir a nossa vida face a emoções mal-adaptadas, uma vez que a constrição da nossa vida apenas reforça as ameaças fantasmas que dão origem a estes estados angustiantes. E aqui reside uma grande oportunidade para aqueles que se afligem devido às emoções mal-adaptadas – a sua presença cria uma situação ideal para o culto da coragem. Pois a coragem, na sua essência, é a capacidade de agir, mesmo quando as tempestades da dúvida se enfurecem no seu interior, e assim, quanto mais a nossa vida é afligida por emoções mal-adaptadas, mais oportunidades temos de praticar a ação desta forma.

Para tirar partido das nossas emoções mal-adaptadas, devemos criar uma lista de pequenas medidas que nos exponham gradualmente às situações que tememos. Cada passo deverá levar-nos progressivamente para mais longe da nossa zona de conforto, mas se pudermos comprometer-nos a dar pelo menos um passo por dia teremos transformado as nossas emoções mal-adaptadas de inibidores do nosso bem-estar em promotores de um “eu” mais forte. Quando uma emoção angustiante é desencadeada através deste exercício, apenas precisamos de a rotular, aceitá-la, e depois avançar, independentemente de quão desconfortáveis nos sintamos. Se formos consistentes na nossa prática, provavelmente notaremos que as nossas emoções mal-adaptadas surgem com uma frequência reduzida. Mas mesmo que continuem a fazer parte da nossa vida, este exercício ensinar-nos-á que as emoções perturbadoras não precisam de ser correntes que nos limitam e que a ação pode ser tomada mesmo na sua presença. Teremos aprendido, por outras palavras, a arte de agir com coragem.

“Coragem é resistência ao medo, domínio do medo – não ausência de medo”.

Mark Twain

Mas para nos tornarmos um verdadeiro mestre dos nossos medos e um dos raros homens que pode dizer honestamente que a coragem é uma característica definidora, temos de estar dispostos a experimentar ocasionalmente passos verdadeiramente ousados, e não apenas passos comedidos. Para darmos a nós próprios a melhor hipótese de sermos capazes de tais feitos, podemos achar útil acrescentar ao nosso arsenal algumas ferramentas e técnicas que aproveitem o poder da ligação corpo-mente. A forma como seguramos o nosso corpo, a forma como o movemos através do mundo e a forma como o alimentamos influencia grandemente o que nos sentimos capazes de alcançar. O nosso corpo, por outras palavras, está tão intimamente ligado ao estado da nossa mente que o domínio do mundo interior deve prestar homenagem ao lado somático da nossa existência, pois, como Carl Jung escreveu:

“A enigmática unicidade do organismo vivo, tem como corolário o facto de que os traços corporais não são meramente físicos, nem os traços mentais são meramente psíquicos. A continuidade da natureza nada sabe sobre as distinções antitéticas que o intelecto humano é forçado a estabelecer como auxiliares para a compreensão”.
Carl Gustav Jung foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica.
Partilha este Artigo
5 3 votos
Article Rating
Subscrever
Notifique-me se
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários