Um dia destes foi noticiado de que o número de fiéis católicos diminuiu na Europa, mas estava em crescimento na Ásia e África. Decidi explorar a secção de comentários à notícia e rapidamente reparei em alguns comentários, que tentavam expor uma eventual corelação direta, entre o nível de literacia académica e a religiosidade ou ausência desta como factor explicativo para o fenómeno da fé ou neste caso, do seu decréscimo no velho continente.

Convenhamos: atualmente, com arrogância e soberba quase inatas, vivendo numa era de tecnologia de ponta, em que parece que tudo lhe chega “de mão beijada”, sem ter de lutar muito, sem ter de parar para pensar, de onde veio, o que aqui faz e para onde vai, o homem comum assume frequentemente uma sobranceria e hostilidade contra as suas raízes culturais, – “mão” essa à qual, em boa parte, deve o seu ser e “alimento” de hoje – , que nem a mais ingrata criança conseguiria replicar. Refiro-me ao facto de o homem contemporâneo, vulgar, de cultura média, que adotou o cientismo e relativismo como dogmas, achar que a ciência é um fim em si mesmo, que explica tudo por si só, e que esta não tem nem pode ter, de alguma forma, qualquer conexão com as raízes ocidentais da cultura, tradição e valores judaico-cristãos. Mito secular feito “dogma” de que todas as nossas liberdades democráticas e conhecimento científico sobre o mundo real, existem porque um conjunto de filósofos de pendor “liberal” se livraram das amarras da “superstição religiosa” do Cristianismo, e inculcaram uma noção de razão e ciência na sociedade ocidental. É comumente aceite, sem grande questionamento, que o Iluminismo foi uma revolução intelectual, que apareceu subitamente, quando o homem finalmente foi capaz de usar a razão e sair finalmente do “obscurantismo” da época medieval e renascentista e das “superstições religiosas” do Cristianismo. Porém, tudo isto não poderia estar mais longe da realidade.

   Qualquer pessoa que tenha estudado um pouco de história das ciências ou filosofia, consegue perceber isto que acabo de dizer. Senão, passo a explicar, ou melhor, a interrogar: porque é que de Copérnico, a Newton, Francis Bacon, ou se quisermos casos não tão longínquos, George Lemâitre (padre católico proponente original da teoria do big bang) ou até Francis Collins (responsável pelo mapeamento do ADN humano), os grandes pioneiros científicos e revolucionários (no bom sentido do termo) eram cristãos? Afoitamente, alguém dirá que é mera coincidência e que estes não foram capazes de se verem livres das “amarras” da religião… Pelo contrário, alguém suficientemente humilde para questionar este padrão vulgar de apreciação, facilmente poderá perceber que houve também algo na sua própria procura da verdade e inteligibilidade do cosmos que os conduziu da natureza ao Criador… Não se confessava crente A. Einstein, afirmando mesmo que as ciências da natureza conduziam naturalmente à religião?

 

George Lamâitre com Einstein

   Paciência, estamos infelizmente já habituados a que factos verificáveis, outrora apreciados e valiosos, tenham, entretanto, por ânimo fraudulento e distorção histórica, ficado arrumados nos confins da história, empurrados para debaixo do tapete, suprimidos e até ridicularizados de forma hostil!…

   Na Carta aos Romanos (vs. 18 a 20), o apóstolo Paulo diz o seguinte:

A ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis.”

    Aqui, S. Paulo está claramente a declarar que a obra de Deus está à disposição do homem para este a procurar conhecer e reconhecer como obra da criação. Por outras palavras, o mundo é inteligível, o mundo criado diz-nos algo sobre o seu Criador. O que pode ser conhecido sobre Deus através da natureza do universo é suficientemente claro, para que a soberba da sua rejeição ou a sua ignorância voluntária sejam «indesculpáveis». Mas então, porque é que tanta gente rejeita sem hesitação? Porque, usando termos de S. Paulo, são muitos os que, culposamente, «suprimem a verdade». 

   

Apóstolo São Paulo - Vaticano

Antes que os meus eventuais leitores auto denominados ateus e agnósticos comecem já a desistir de ler o resto deste artigo, de forma a tornar estas linhas eventualmente mais satisfatórias a descrentes e céticos, até porque muita gente já deve ter ido ver um dos filmes do ano –  “Oppenheimer” – evoco agora o «Pai da Bomba Atómica». Como sabemos, este não era cristão, era um judeu agnóstico secular, que mais tarde acabou por demonstrar interesse em diversas religiões, maioritariamente orientais. Aquando da sua observação do ensaio da sua bomba atómica, ficou icónica a citação por si feita do texto religioso hindu, Bhagavad Gita“I am Death, the destroyer of worlds”. Não obstante este seu interesse particular, num artigo seu intitulado “On Science and Culture”Oppenheimer explicita abertamente porque é que a revolução científica tinha começado na altura em que começou:

J.R. Oppenheimer

Efetivamente, a «revolução científica», que ocorreu principalmente entre os séculos XVI e XVII, marcou uma mudança profunda na maneira como as pessoas entendiam e estudavam o mundo natural. Notoriamente, nesta época (basta lembrar os trabalhos de uma conjunto distinto de cientistas, de que são exemplo Copérnico, Galileu, Johannes Kepler e Isaac Newton) foram feitos muitos e enormes avanços nos campos da astronomia, física, matemática e medicina. Mas, como é evidente, as mudanças a nível de pensamento filosófico, acompanharam e precederam essas transformações, sendo a este título emblemática a figura de Descartes, a partir do seu “cogito ergo sum” (penso logo existo), fazendo deslocar a filosofia, até aí essencialmente metafísica, para o campo da gnoseologia.

   E, todavia, como bem supõe Oppenheimer, podemos e devemos ir bem atrás, aos séculos XIII e XIV, às grandes e acaloradas disputas da escolástica sobre a natureza e valor das ideias, para entrever a afirmação de um pensamento empirista-sensista na base da mentalidade experimentalista da época moderna. Já no século anterior, nos estudos da escola catedralícia de Chartres, se tornara notável a combinação aí prosseguida da especulação metafísica com as investigações e explicações naturais e um elevado padrão de estudos literários. Na Universidade de Oxford, por via dos seus mestres franciscanos Roberto de Grosseteste (ca. 1168/70-1253) e Roger Bacon (1214-1294), afirmar-se-iam, respetivamente, os princípios da necessidade das matemáticas na interpretação da natureza e da necessidade da observação e da experiência na captação das «leis da natureza». Um outro franciscano inglês, Guilherme de Ockham (1285-1347), discípulo do Beato João Duns Escoto (1265-1308) em Paris, acentuará a lógica experimentalista, no seu caso evoluindo mesmo, filosoficamente, num sentido nominalista, de redução da ideia, universal e abstrata, a um puro nome, desprovido de valor objetivo, não representando algo real, diferente do sujeito cognoscente. O estudo das essências, do que é permanente, constante, cedia passo ao estudo da realidade exclusivamente do singular, do mutável, do indivíduo, apreendido claramente na perceção sensitiva, concreta.

    Conforme se verifica e é comummente reconhecido, a religiosidade e formação teológica destes frades mendicantes não os afastou do experimentalismo, característico da ciência moderna, de que eles foram seculares e surpreendentes antecipadores.

   Deduzimos que para Oppenheimer a mundividência cristã forneceu uma base de incentivo cultural à busca do conhecimento científico. Crendo num universo racional, ordenado e criado por Deus, fácil e consequentemente se postulava a ideia de que o mundo natural poderia ser compreendido e estudado de maneira sistemática, levando a descobertas e avanços no conhecimento. Por outro lado, a noção cristã de verdade, que enfatizava a autonomia e harmonia entre a fé e a razão, desempenhou um papel importantíssimo ao criar o ambiente propício para a exploração científica. Teólogos e filósofos cristãos acreditavam que a ordem divina se refletia no mundo natural, e estudar o mundo era uma maneira de entender melhor e louvar o próprio Criador. Esta perspetiva teria incentivado e impulsionado uma atitude proactiva de conhecimento do mundo, para que fossem realizadas observações empíricas, medições e experimentações. Além disso, a ética cristã de compaixão, de cuidar do próximo e procurar aliviar o sofrimento no mundo, contribuiu para o alargamento da ideia do bem-estar e assistência ao maior número de pessoas possível.

    Descobertas científicas levaram a avanços tecnológicos que melhoraram as condições e qualidade de vida de forma generalizada, são disso alguns exemplos: o calendário anual que o mundo inteiro usa à data de hoje:o calendário gregoriano promulgado pelo Papa Gregório em 1580, calendário este que foi desenvolvido pela igreja Católica, especificamente por Padres Jesuítas e Dominicanos. Os medievais europeus inventaram os óculos, o relógio mecânico,  desenvolveram o moinho de vento, lentes e quase todo o tipo de maquinaria lançando verdadeiros avanços tecnológicos e intelectuais e as bases para diversas conquistas civilizacionais que conhecemos. É quase supérfluo evocar o papel assistencial da Igreja e os avanços neste domínio prosseguidos antes e depois Thesaurus Pauperum do médico e papa português Pedro Julião. A absorção e transmissão islâmica ao ocidente dos conhecimentos técnicos das civilizações orientais, bem como o próprio estudo escolar ocidental das matérias quadriviais, pressupondo as aplicações práticas e utilitárias da matemática às necessidades da vida corrente, contribuíram decisivamente para os assinaláveis progressos que acompanham a expansão europeia, desde logo a que vai do século XIII ao XV, tão eloquentemente historiada por Pierre Chaunu.

 

   Efetivamente, a noção de procura, descoberta e conhecimento do mundo e de melhoria da condição humana está em consonância com o conceito cristão de responsabilidade de utilização do conhecimento e recursos para serviço os outros, ética essa aliada a uma ótica de transcendência. Em suma, regressando a Oppenheimer, faz todo o sentido o argumento que conecta a chamada «revolução científica» com as noções cristãs de verdade e bem comum, destacando o papel da visão cristã do mundo cristã ao fomentar um ambiente de curiosidade, exploração e indagação racional. A crença num universo ordenado, criado por um Deus racional, incentivou estudiosos a estudar e compreender o mundo natural, levando, em última instância, a avanços científicos que beneficiaram a humanidade como um todo.

    Francis Bacon, considerado o Pai do método científico empírico, na sua obra “Novum Organum” diz o seguinte

 

 “O homem, pela queda, caiu ao mesmo tempo do seu estado de inocência e do seu domínio sobre a criação. Ambas essas perdas, no entanto, podem ser em parte reparadas mesmo nesta vida; a primeira pela religião e fé, a segunda pelas artes e as ciências.”

 Francis Bacon quis fazer referência à noção de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, na sua capacidade de ser um reflexo de Deus, moralmente, intelectualmente e no seu domínio integral sobre a natureza. Porém, o homem pelo pecado cai do seu estado de graça, que não lhe permite ter a humildade para procurar a verdade. Através da ciência, o homem poderia, segundo Bacon, restaurar o seu domínio sobre a natureza, o que de certo modo, vai de encontro com o que Oppenheimer expôs no excerto do artigo aqui transcrito. Queremos tornar o mundo melhor e a ciência pode-nos ajudar nessa aventura. Não obstante, Bacon não via a ciência de forma autónoma, independente e desconectada de uma noção de transcendência, mas como coincidente na aproximação ao transcendente; como próxima da revelação das Escrituras relativamente à queda, ao pecado, e que a aproximação da verdade, espelhada no Universo, teria um efeito redentor, e deste modo nos tornaria mais próximos de Deus (a Suma Verdade). Dito de outra forma: ao descobrir e descodificar o fenómeno da criação, aproximamo-nos do Criador. Até certo ponto, a ciência era percebida como uma atividade religiosa de contemplação. Os pioneiros da revolução científica perceberam e partilharam a ideia de que há um Deus razoável que criou o universo perfeito e cognoscível, e que o homem, através do uso da razão (autónoma, mas não estorvada, antes estimulada pela fé), poderia penetrar e adiantar-se, com êxito crescente, na decifração dos mistérios da natureza e do cosmos.

Francis Bacon

  No mundo contemporâneo andamos na sombra e «aos ombros de gigantes», e, não só não nos apercebemos disso, como ainda fazemos frequentemente troça do legado recebido. Em boa verdade, as contribuições destes gigantes lançaram a ciência tal como a conhecemos. Questiono: se os cientistas modernos, sem estas noções e motivações seriam capazes de fazer ciência? Porque, no fundo, foi num quadro mental de raiz bíblica e cristã que se originou a «revolução científica» tal como a conhecemos. Se o leitor acha que estou a exagerar e que eventualmente de uma forma ou de outra, teríamos descoberto o que sabemos hoje, permita-me então – algo provocatoriamente – dizer-lhe que talvez sofra do enviesamento cognitivo denominado “maldição do conhecimento” – ”curse of knowledge” (o qual explica que assim que se alcança um certo nível de conhecimento, não se consegue imaginar o que seria não o ter)…

    Aos dias de hoje sabemos bem que o universo e a leis que o regem tem uma precisão incrível e inteligível e que as suas leis fundamentais podem ser percecionadas através do uso da razão. A ideia de que o universo pode ser percebido, está absorvida na mente humana. Isto coloca-nos numa posição difícil de nos pormos nos pés de quem ainda não se encontrava nessa posição e que teve de ir descobrindo e desbravando caminho. Como se sabe, Newton disse: “Se eu vi mais longe, foi porque estou sobre o ombro de gigantes”. Esta reflexão e lição de humildade de Newton espelha uma ideia comumente ignorada na sociedade contemporânea ocidental e que nos deveria fazer refletir, a saber, a de que as realizações, perceções e conclusões de alguém são construídas sobre o conhecimento e as contribuições daqueles que vieram antes de si. Noutras palavras, Newton reconheceu que suas próprias descobertas foram apenas possíveis graças ao trabalho e às conquistas de pensadores que o precederam. Essa citação destaca a natureza colaborativa e cumulativa do progresso científico, onde cada geração beneficia dos avanços feitos por aqueles que a precederam. E quem diz isto relativamente ao cristianismo, poderá dizê-lo relativamente à tradição greco-romana; assim, damos como garantida a existência de átomos, mas é vulgar esquecermo-nos de que quem criou a primeira teoria dos átomos foram Leucipo e Demócrito na Grécia pré-socrática, dados que a ciência lecionada na academia não costuma ensinar (já que a filosofia e história das ciências são desvalorizadas, o ecletismo desincentivado e a híper especialização técnica valorizada como meio e fim em si mesmo).

    Infelizmente, tende-se a ignorar que grande parte do legado civilizacional do qual somos beneficiários não vem do “éter” do Iluminismo, mas precede-o. Afinal, o imperativo categórico de Kant: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal”, não é nada mais do que uma derivação do ensinamento de Jesus no sermão da montanha:” (…) portanto, tudo o que vós quereis que vos façam, fazei também a eles (…)” (Mateus 7:12)

    Assim, que consequências felizes facilmente aconteceriam, se, em vez de o comum mortal se encher de inconsciente soberba ao dar-se palmadinhas nas costas pelas suas inatas  circunstâncias, numa expressão usada acriticamente “de pleno séc. XXI” (como se isso fosse por si só uma prova de conhecimento e sabedoria), reconhecesse que os avanços dos quais é beneficiário hoje, foram sendo construídos sobre fundamentos estabelecidos no passado? 

   Questionemo-nos ainda porque será que a chamada «revolução científica» moderna não se desenvolveu antes na Ásia, não obstante os grandes legados daí advindos, nomeadamente no campo da matemática, e apesar da sua história, cultura e sabedoria milenares?

     Porque será que o modelo universitário, tal como o conhecemos hoje, teve as suas raízes na Europa medieval, em berço bem no centro da instituição eclesial? Porque será que facto tão notório e pleno de significado cultural há de ser tão generalizadamente escamoteado ao nível da cultura média?

   Conforme é manifesto, durante a Idade Média, as escolas das catedrais e as escolas monásticas estavam entre os primeiros centros de aprendizagem na Europa. Estas instituições forneciam educação principalmente para o clero e os monges, mas também para os leigos. Com o decorrer do tempo, estes primeiros centros de aprendizagem evoluíram e expandiram-se no que agora reconhecemos como universidades. A Igreja Católica desempenhou um papel crucial na génese, apoio e configuração destas grandes corporações de escolas e mestres. Algumas das primeiras universidades na Europa foram, compreensivelmente, estabelecidas em cidades com fortes ligações eclesiásticas. Por exemplo, a Universidade mais antiga do mundo, é a Universidade de Bolonha, em Itália, fundada em 1088, e a Universidade de Paris foi fundada no século seguinte (1170), a partir da escola da catedralícia de Notre-Dame. Oxford e Cambridge, embora não tenham sido inicialmente instituições monásticas, foram influenciadas pelos desenvolvimentos educacionais da época e pelo ambiente intelectual da Europa medieval. Foram fundadas nos séculos XII e XIII e têm ligações históricas a ordens religiosas da Igreja Católica. A frase que consta no pórtico de entrada de Oxford: “Dominus Illuminatio Mea” – O senhor é a minha luz” são as palavras introdutórias do Salmo 27 da Bíblia.

pórtico entrada universidade de oxford
Universidade de Bolonha - 1088 - a universidade mais antiga do mundo

   Não obstante estes factos, e não obstante contundentes denúncias sobre as imposturas sistematicamente transmitidas sobre a Idade Média, de que foi muito autorizado e insuspeito denunciante Jacques Heers (Le Moyen Âge une imposture, 1992), continuamos infelizmente a ver hoje habitualmente referida a época medieval (de longos e diferenciados mil anos, que, avisadamente, os britanicos designam no plural Middle Ages), como uma época de “obscurantismo” e de “trevas”. Porque se continua a repetir tal coisa, atendendo a que mesmo a metodologia académica das universidades, surgiu também a partir da metodologia das escolas catedrais e monásticas e que umas e outras são continuadoras e renovadoras da tradição clássica das artes liberais? No seu labor, o teólogo aplicava quaestiones à sacra pagina. Filósofos e teólogos, a partir do estudo da sagrada escritura e da observação do «livro da natureza» propunham hipóteses e seguidamente testavam essas mesmas hipóteses de forma a verem quão sustentadas elas seriam face aos resultados. Posteriormente, estas sofreriam alterações ou seriam levantadas novas hipóteses, testes e resultados. A noção era de que através desta metodologia de hipótese – teste – resultado, estar-se-iam a aproximar da verdade. A questão que se coloca perante este facto é a seguinte: o que aconteceria se se pegasse neste método e se aplicasse ao conhecimento do universo? Voltamos à noção da inteligibilidade do universo ao alcance do homem, e à noção de que esta busca da verdade e crescente participação dela, têm um efeito redentor e de elevação da condição e qualidade da vida humana. Isto é o ethos do cientista, chamado pelo seu labor a cooperar na Criação, perceba-o ele ou não. A noção de que o conhecimento do cosmos por mais admirável que seja – e é – é sempre limitado e finito, transcendendo a razão humana, embora por ela crescentemente cognoscível e inteligível, permanecendo esse cosmos simultaneamente um eterno mistério e uma interpelação, inclina naturalmente ao razoamento teológico e à proposição religiosa.

   Por oposição, se adotarmos a noção ateia e materialista do mundo natural como a totalidade da realidade, tudo o que existe e vale a pena saber, então é legítimo assumir que a repetição de experiências sem limite pode não permitir chegar a uma noção de verdade tal como ela é: absoluta. A limitação da compreensão puramente empírica e materialista do mundo, pode não ser capaz de chegar a uma verdade absoluta, na medida em que a ciência, muitas vezes opera por meio de experiências repetidas para chegar a conclusões que são válidas apenas dentro dos limites do que pode ser observado e testado.
Se quisermos ir mais longe, ao adotar esta noção podemos com facilidade despir o homem da noção de existência de uma alma ou de um princípio transcendente; então, a própria emoção e os sentimentos em geral podem estar em causa. Raiva, alegria, euforia, tristeza ou saudade, não passariam de fenómenos e libertações químicas no nosso cérebro, que podem ser depreendidos, compensados e induzidos quimicamente (qualquer semelhança com o admirável mundo novo de Huxley não é por acaso). Poesia, música, literatura não passariam de um conjunto de palavras, sons e letras sem qualquer significado especial, transcendente à razão humana. Se o universo da verdade materialista e sensista fosse tudo o que havia para conhecer, a verdade antropológica-existencial de Shakespeare, Dostoievski ou Tolstói sobre a condição humana não passam de meras narrativas.

   Se quiser ser meramente ultra racionalista, também no domínio ético: o que me impede de ser um utilitarista prático em tudo que faço, de utilizar e fazer do outro aquilo que eu bem entender dele, sem quaisquer limites, da forma que me aprouver, para satisfazer os meus desejos e objetivos? Se a verdade não é inteligível, nem transcendente, nem absoluta, o que há de irracional nisso? Opostamente, se adotarmos uma perspetiva judaico-cristã, não chegaremos às mesmas parodoxais conclusões.

   No entanto, se o mundo é perfeito desde a sua imensidão até ao mais ínfimo e microscópico pormenor, ele é inteligente, pelo menos na medida em que é perfeito e adaptativo. Isto é, para descobrir fenómenos da ordem natural, temos de acreditar que o mundo tem uma determinada ordem inteligível que o rege; de que a verdade que procuramos conhecer sobre o mundo real e que o organiza, transcende a nossa realidade e é externa à nossa razão, mas a partir da qual poderemos chegar a uma crescente e cada vez mais ajustada aproximação ao mesmo.

    Os pioneiros da revolução científica tinham a noção de que o universo teria sido criado por um arquiteto, um criador, que usava princípios matemáticos para criar o universo. Paremos um brevíssimo momento para refletir sobre isto. O que é a matemática senão uma forma de linguagem, que existe simultaneamente dentro e fora do espaço, tempo e matéria sem ser nenhum deles, mas estando em cada um deles? O que é senão a forma mais subtil, perfeita, inteligível e exata de mapeamento e conhecimento do mundo?

   Se eu atirar um objeto, intuitivamente sabemos que ele irá cair. Mas se quisermos refletir e aprofundar esse fenómeno, o que é que vai acontecer a esse objeto? Vai seguir uma equação matemática exata. Se olharmos a tudo que nos rodeia, podemos concluir que tudo segue pequenas equações matemáticas exatas e subtis. Estes fenómenos inteligíveis, a noção deles, como forma discursiva da realidade, seria algo surpreendente para qualquer pessoa que não tenha tido a sua mente desenvolta pelo teísmo cristão e pela noção do “logos”, como foi o caso dos pioneiros da revolução científica. O conceito “logos”, em todo o seu sentido, diz respeito, não só, ao princípio da criação do mundo, à criação divina, no sentido metafísico, como a todo o princípio estrutural subjacente à realidade. Diz respeito à palavra de Deus, à palavra encarnada, à ordem gerada a partir do caos, à criação divina que criou e sustém o universo através da linguagem, do mesmo modo que diz respeito ao princípio de inteligibilidade e racionalidade, que subjaz ao universo e nos permite conhecê-lo e compreendê-lo.

   O mundo real em toda a sua forma, desde a maior, como um vulcão à mais ínfima como o mapa genético de uma única célula, tem uma forma de linguagem percetível. A única coisa que sabemos capaz de construir linguagem é uma mente. Para quem tenha o teísmo cristão presente, isto não é surpreendente, esta forma de linguagem é uma linguagem divina, o logos eterno.

   Assim como ao lermos uma obra, sem o vermos ou conhecermos, reconhecemos que existe o seu autor que a criou e escreveu, ou quando vemos um filme, sabemos que houve um argumentista e realizador que o desenvolveram, ou ao ouvirmos uma música sabemos que alguém a compôs e lhe fez a letra mesmo que não conheçamos, numa lógica macro, que tudo transcende e sustém, deduzimos a existência de um criador porque dele são reflexo as próprias criaturas. Como assim?

    Se assumirmos uma posição materialista-cética e negarmos a priori que o universo tenha sido criado por um arquiteto cósmico, que mantém e sustenta a criação através do seu discurso, porque é que seria de algum modo expectável que o universo fosse inteligível, como vastíssimo espaço de realidade onde tudo parece seguir um conjunto de leis naturais, principalmente quando estas seguem uma forma discursiva cognoscível (matemática)?

    Mas coloquemos primeiro a questão, porque é que os humanos, são a única criatura no universo que é capaz de descobrir as leis do universo?

    A ideia bíblica de que fomos «criados à imagem de Deus», remete para a noção de que existe algo de intrinsecamente divino nos homens e nos diferencia de todas as outras espécies. De que fomos criados para compreender a criação divina, compreender o mundo que nos rodeia, sermos um elemento integral de domínio e harmonia sobre o mundo natural, demonstrativo dessa nossa “faísca” de divindade e da nossa finalidade de gerador de ordem na imensidão do cosmos.  Não duvido de que, por esta altura, alguns eventuais leitores mais resistentes estejam a desconfiar de que se está aqui a fazer a apologia do criacionismo e a negar o evolucionismo. Nada disso.

   Quão surpreendente é a nossa capacidade de compreensão do mundo se assumirmos a posição naturalista como uma verdade axiomática? De acordo com o mais plausível cenário naturalista – o darwinismo –  a nossa capacidade de razão é meramente fruto da seleção natural a agir sob variações dentro de uma população. A seleção natural, favorece organismos cujas características ajudam a adaptar, sobreviver e reproduzir. No entanto, se isto nos permitiu suprimir necessidades básicas, como a caça, reprodução e, no fundo, a sobrevivência da espécie, até que ponto nos permitiu refletir, explorar e aprofundar sobre questões éticas, filosóficas e até políticas? De um ponto de vista evolucionista a nossa capacidade para a razão não foi feita para tal; não tomem a minha “opinião” como garantida, afirmou o próprio Darwin:

“Surge-me sempre a terrível dúvida se as convicções da mente do homem, que se desenvolveu a partir da mente de animais inferiores, têm algum valor ou são de todo confiáveis. Alguém confiaria nas convicções da mente de um macaco, se é que existem convicções em tal mente? (Charles Darwin To William Graham 3 July 1881)

 

A mente de um macaco não foi – seguramente – feita para perceber as leis do universo ou debater-se com questões filosóficas, porém, de um ponto de vista meramente evolucionista-somático, também a mente humana o não terá sido nos seus mais distantes primórdios. Ainda que a evolução dos hominídeos, com mudanças alimentares e anatómicas, libertação das mãos e nova volumetria da caixa craniana tenham desempenhado o seu papel, e seja arqueologicamente manifesto que desde que houve comunidades de homo sapiens sobre a Terra tenha havido primitivas manifestações de “arte” e “espiritualidade”, só por si, nunca a capacidade “especulativa” e de “representação” dos mais antigos expoentes da nossa espécie teria condições de ir muito longe, em coerência e segurança.

  Se, assumindo uma postura cética, recusarmos previamente a ideia de que o universo tenha sido criado por um arquiteto cósmico, com um desígnio, uma concepção inicial e um plano de intervenção sujeito às contingências evolutivas da própria obra, um arquiteto que mantém e sustenta a criação por meio do seu “discurso”, ou pelo menos tendo-lhe dado o impulso inicial antes de entregá-lo às leis naturais, como poderíamos razoavelmente esperar que o universo fosse inteligível? Especialmente quando essas leis seguem uma forma discursiva, cognoscível e matemática?

   Assim, a inteligibilidade do universo converge com a revelação cristã; filosofia e teologia, ciência e fé são abordagens autónomas, mas que se completam e harmonizam.

   As ideias fundacionais que deram lugar à revolução científica estão intimamente ligadas e foram influenciadas pela teologia cristã. Não conhecer e reconhecer isto é cuspir na mão do legado civilizacional que nos deu de comer.

    Inteligibilidade, compreensão e desejo de verdade: o universo pode ser depreendido, compreendido e nós desejamos conhecê-lo; este é elementar ponto de partida, primeiríssima hipótese, que tomamos por garantida.

Acreditamos que o universo pode ser percebido, que nós somos o único ser à face da terra capaz de o perceber, compreender, admirar e mesmo (e talvez sobretudo) amar, vendo em toda a criatura situada no Espaço e no Tempo como um reflexo da Sabedoria Divina e como uma oportunidade de um «itinerário da mente» para a maior das verdades, ou aquilo que São Tomás designou de  “Sumo Bem”, Deus.

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