Aleksandr Solzhenitsyn enquanto se debruçava na reflexão relacionada com a descida vertiginosa da União Soviética rumo ao totalitarismo, em meados do século XX e sobre todas as coisas que poderiam ter sido feitas de forma a evitar este domínio, escreveu o seguinte:
O século XX mostra claramente que o totalitarismo não se afigura solução para eventuais problemas sistémicos ou estruturais (violência, hedonismo, terrorismo etc), mas um mal social do tipo mais horrível. Mais homens, mulheres e crianças inocentes foram mortos pelos regimes totalitários do século XX do que por catástrofes naturais, pandemias ou mesmo pelas duas guerras mundiais. Se, portanto, temos a infelicidade de viver num mundo que aparente entreter esta doença do totalitarismo, surge a questão: que podemos fazer para escapar deste desfecho horrendo? Precisamos assim de explorar o que se chama uma “fuga para a frente” do controlo das mentes cruéis e retorcidas dos pretensos totalitaristas.
Para compreender o que esta forma de fuga implica, contrastaremos com duas outras formas de escapismo às dificuldades de viver durante uma tentativa de tomada totalitária de controlo – a “fuga para trás” e a “fuga física”. A fuga para trás, implica a perda de consciência da realidade e a precariedade da própria situação através do uso de drogas e álcool ou através da permanência nociva em frente dos ecrãs (Televisão, telemóvel etc). A fuga para trás pode proporcionar um alívio a curto prazo, diminuindo consequentes sentimentos de ansiedade, depressão e tédio, mas quanto maior for a dependência de tais atividades, mais a saúde mental se deteriora. Além disso, a fuga para trás nada faz para impedir o aumento do totalitarismo, pois promove a docilidade, a passividade e a apatia, tudo características que tornam as pessoas mais manipuláveis e controláveis, ou como o Dr. Joost Meerloo escreveu no seu livro sobre totalitarismo:
Uma alternativa à fuga para trás, é a fuga física que consiste basicamente na deslocação para um local que oferece mais liberdade. Esta forma de fuga conhece diversos benefícios, pois somos presenteados com uma oportunidade gratificante na vida, “porque não viver algures sem o controlo sufocante de políticos e burocratas corruptos e famintos de poder?” Mas há evidentemente problemas com esta forma de fuga. Em primeiro lugar, para muitas pessoas, não é prático fazer as malas e mudar-se para uma nova terra. Além disso, se vivemos numa época em que a ascensão da tirania é um fenómeno global, a praticabilidade da fuga física diminui significativamente, uma vez que os bolsos de liberdade procurados são poucos e distantes. Fugir fisicamente, como fugir para trás, não é a solução ideal para a ascensão do totalitarismo, em vez disso, a solução é fugir para a frente para uma nova e melhor realidade.
O que implica a fuga para a frente? Para responder a esta pergunta, precisamos de dissipar a noção de que o totalitarismo pode ser derrotado através da complacência. Muitas pessoas cedem aos comandos dos pretensos totalitaristas porque acreditam que fazê-lo é o meio mais rápido de regressar a uma eventual semelhança de normalidade. Mas esta é uma forma cobarde e ignorante de agir. Pois a sua obediência apenas serve para encorajar regimes totalitários, um ponto devidamente enfatizado pela filósofa política Hannah Arendt no seu livro As Origens do Totalitarismo:
A conformidade é o alimento que sustenta os totalitários. A conformidade não é, nem nunca será, o caminho de regresso a alguma forma de normalidade. O não cumprimento e a desobediência civil são essenciais para contrariar a ascensão do regime totalitário. Mas para além da resistência, uma fuga para a frente para uma realidade sem a doença do regime totalitário exige a construção de uma sociedade paralela. Uma sociedade paralela serve dois objetivos principais: oferece bolsas de liberdade àqueles que são rejeitados pelo sistema totalitário, ou que se recusam a participar nele, e constitui a base para uma nova sociedade que pode crescer das cinzas da destruição forjada pelos totalitários. Ou como Václav Havel, um dissidente sob o domínio comunista da Checoslováquia, explica no seu livro The Power of the Powerless:
Há inúmeras formas de contribuir para a construção de uma sociedade paralela. É possível construir tecnologias que promovam a liberdade ou instituições económicas agoristas que promovam o intercâmbio voluntário. Pode-se gerir um negócio que resista à implementação de leis ou mandatos injustos, ou pode-se criar meios de comunicação ou instituições educativas que contrariem as mentiras e a propaganda do Estado. Ou pode-se criar música, literatura ou obras de arte que contrariem a mesquinhez da cultura totalitária. A sociedade paralela é uma alternativa descentralizada e voluntária ao controlo centralizado e coercivo da sociedade totalitária e, como explica Havel:
“Uma das tarefas mais importantes que os ‘movimentos dissidentes’ se impuseram a eles próprios é apoiar e desenvolver [estruturas sociais paralelas]…Que mais são essas tentativas iniciais de auto-organização social do que os esforços de uma certa parte da sociedade para … se libertar dos aspetos autossustentáveis do totalitarismo e, assim, se libertar radicalmente do seu envolvimento no sistema [totalitário]”?
E como ele explica mais adiante:
A construção de uma sociedade paralela, porém, não é apenas uma solução a longo prazo para a destruição totalitária, mas serve também para contrariar a ascensão do regime totalitário. Pois o acto de construir estruturas sociais paralelas revela que nem todos se limitarão a aquiescer e a submeter-se ao controlo total do Estado e, como foi reforçado por Hannah Arendt, isto ajuda a manter os pretensos totalitaristas sob controlo. Este processo também contraria a atomização social que vem com o domínio totalitário ao promover laços comunitários voluntários entre aqueles que prezam a liberdade. E como um benefício adicional, para aqueles que participam neste processo, pode servir como um veículo saudável para escapar aos sentimentos diários de ansiedade, tédio e depressão que acompanham a vida num mundo tempestuoso acometido por uma descida vertiginosa ao totalitarismo. Pois se escolhermos um objetivo de modo a contribuir para a construção da sociedade paralela, e trabalharmos para ela de forma disciplinada e focalizada, damos mais sentido à nossa vida e abrimos a possibilidade de atingir o pico de estados experimentais de fluxo = flow ou Rausch.
O fluxo (ou flow em inglês – a lembrar a ideia taoista) é um estado otimizado de consciência “em que a atenção está tão estreitamente centrada numa atividade que a sensação de tempo se desvanece, juntamente com os problemas e preocupações da vida quotidiana”. (Natasha Dow Schüll, Addiction by Design). Rausch, por outro lado, é a palavra que Nietzsche utilizou para um estado cognitivo máximo semelhante à descrita na ideia de fluxo.
Rausch é um subproduto emergente de uma tentativa focalizada de efetuar mudanças no mundo real e quando em Rausch, atuamos no nosso melhor, ou como John Richardson explica no Novo Darwinismo de Nietzsche:
Tanto o fluxo como a Rausch são formas saudáveis de escapar às misérias quotidianas de viver numa sociedade doente e corrompida. Ao contrário dos territórios experimentais entorpecidos da fuga para trás que nos enfraquece o corpo e a mente, o fluxo e a Rausch fortalecem-nos e aumentam os nossos sentimentos de poder. Quanto mais pessoas experimentarem o fluxo ou Rausch, mais difícil é para aqueles que estão no poder rebocar uma população para as cadeias da servidão totalitária e, como Aleksandr Solzhenitsyn avisou:
Tentar a fuga para a frente, contribuindo para a criação de uma sociedade paralela e durante esse processo atingir os estados de fluxo e Rausch acarreta determinados riscos, e o sucesso não é garantido, porém é uma opção muito melhor do que simplesmente agir passivamente, esperando apenas que as coisas melhorem.
“A esperança é o pior de todos os males porque prolonga os tormentos do homem”
Em vez de mera esperança, é necessária uma ação corajosa do maior número possível de pessoas para evitar o aumento do regime totalitário. E quanto mais cedo as pessoas agirem desafiando os pretensos totalitaristas, maiores serão as hipóteses de sucesso. Pois o erro que foi cometido repetidamente nos países totalitários do século XX foi o de que as pessoas não agiram suficientemente cedo. Milton Mayer, no seu livro “They Thought They Were Free“, entrevista um indivíduo que viveu durante um período totalitário e as suas palavras deveriam servir de advertência para aqueles que vivem num mundo em risco de ser engolido pela máquina destruidora da vida do domínio totalitário: