Thomas Mann conheceu Theodor Adorno na casa de Max Horkheimer, figura maior e talvez mais representativa da afamada Escola de Frankfurt, onde se viria a desenvolver a teoria social e crítica filosófica que ainda se revela pertinente atualmente. Estes três nomes eram considerados refugiados prestigiantes da Alemanha nacional socialista, devido à sua intelectualidade e respetivas deliberações sobre a organização social e cultural.

No verão de 1943, Mann iniciou o seu empreendimento mais ambicioso e que ainda hoje assegura o ápice da sua notoriedade, nomeadamente o “Doutor Fausto”, o romance onde Mann se comprometia a evidenciar a sua leitura alegórica relativamente à catástrofe alemã, afirmando igualmente um momento culminante no seu processo de modelar-se em J.W. Goethe, aspeto identificável na sua obra conjunta.  

Uma paixão inegável de Mann era a música, a superioridade artística almejada pelo abstrato musical já havia sido devidamente ilustrada no seu primeiro romance “Os Buddenbrooks”. Conseguimos depreender retrospetivamente a disposição quase obsessiva relativamente à obra e legado de Wagner. Particularidades indistintas dos enredos como o “Anel dos nibelungos” e “Mestres Cantores” ou ainda as complexidades dilemáticas humanas presentes nas personagens operáticas como Tristão e Isolda, todas estas alusões simbólicas e arquetípicas parecem perfumar o trabalho literário do escritor alemão.  

Thomas Mann

A história de Adorno converge nesta trajetória precisamente no território musical, Adorno cultivava incessantemente a ambição maior de ser compositor, sendo um dos seus docentes mais reputados o compositor austríaco Alban Berg. Ele chegou a compor música de câmara com a devida reverência pelo espírito definidor da Segunda Escola de Viena, contudo era significativamente mais prolífero na elaboração de críticas musicais, iniciando de certa forma uma disposição vanguardista na investigação sobre o significado e a epistemologia da música e a respetiva apresentação conjunta destes elementos com análises do contexto social da composição.

Aquilo que singularizava o empreendimento de Theodor Adorno era a sua intenção de combinar uma musicologia altamente técnica, por vezes hermética, com as preocupações abrangentes relacionadas com o papel da música na história e na sociedade. O primeiro livro de Adorno foi uma monografia sobre Kierkegaard, onde o diagnóstico estético/filosófico do “Don giovani” de Mozart se revelou decisivo. Porém, são as considerações sobre a função da música clássica e popular numa democracia consumista de massas e incorrigivelmente populista que melhor servem o propósito deste artigo, pois é irrefutável o postulado disruptivo que tais deliberações acabaram por assumir.

Theodor Adorno

A colaboração ativa entre os dois inicia-se também no verão de 1943 durante o momento concludente na redação do quarto capítulo do “Doutor Fausto”. Esta colaboração foi devidamente documentada no volumoso diário de Mann e nas suas memórias. Adorno contribuiu não somente com detalhes técnicos referentes a processos instrumentais e de composição, mas também com as suas próprias aceções radicais relacionadas com a génese da composição musical, pressão dos momentos históricos antecedentes e de uma crise social. Adorno chegou mesmo ao cúmplice ato de emprestar a Mann a versão manuscrita da primeira parte do seu livro “Filosofia da Nova Música”, juntamente com as suas anotações sobre Beethoven (Magnus opus inacabada).

O oitavo capítulo de Mann foi lido a Adorno em 27 de setembro de 1943 e, mais tarde, revisto em resposta às observações feitas por Adorno. O capítulo consiste nas palestras de Wendell Kretzschmar sobre o Beethoven de 1820 e sua última sonata para piano, opus 111. Bruno Walter considerou mesmo como a mais profunda análise de Beethoven já empreendida. Nesse texto complexo, as participações do autor e do exegeta são inseparáveis. Ambos nutriam um fascínio de longa data pelo trabalho da última fase de um artista, quer seja em Goethe, em Beethoven ou em Mahler (“Morte em Veneza”).    

Thomas Mann conclui que “quando a morte e a grandeza coincidem, o que resulta é uma objetividade (“Objektivismus’) com tendência para o convencional. Nesse processo, o magistral e o subjetivo se trasladam para o campo do mítico”. Mann disse que “sempre se sentira metade músico”.

Já Adorno também confessa na sua correspondência (mais concretamente numa carta datada em 1945) que conhecer Thomas Mann tinha sido um sonho da sua juventude e que se havia tornado um “pedaço de utopia realizada”.

Mesmo compreendendo a dívida literária relacionada com o episódio do Grande Inquisidor nos “Irmãos Karamazov” o vigésimo quinto capítulo do “Doutor Fausto” permanece como um ponto alto no imaginário intelectual e psicológico na literatura. Não é somente o diálogo sobre o pacto feito com o diabo que o torna memorável, mas sim as fórmulas literárias utilizadas por Mann para replicar uma personificação “mefistofeliana” fazendo enxergar ao leitor uma astúcia ludibriosa e uma postura irremediavelmente rasteira, erudita em hedonismo e eloquente em promessas terrenas. Muitas das reflexões devem bastante a Adorno naturalmente, porém a voz demoníaca e a sua constituição sedutora agradecem à originalidade recreativa de Mann. É quase como uma colaboração simbiótica que esta parceria consegue lapidar a inextrincável condição perniciosa na teoria da criação, apresentando com nudez esta patologia estética do génio artístico-filosófico e a enfermidade mental consequente do romantismo alemão.

Mann faz questão de afirmar com assertividade que os criadores supremos, na arte e no pensamento, são condenados ao colapso cerebral, ao impulso suicida e à razão desgovernada, desconsiderando a imponência no nome ou legado, pois estamos a recorrer aqui ilustrativamente a figuras como Hölderlin, Schumann, Nietzsche ou Hugo Wolf.

O crime de Prometeu, o “néctar da realização artística e metafísica é veneno” como expôs brilhantemente George Stein no seu ensaio “Deus e o diabo na terra do Sol” (ensaio que fundamenta este artigo).

Este ápice catastrófico representado pelos conflitos bélicos protagonizados pela Alemanha no século XX é a fatídica consequência do avanço civilizacional alicerçado na razão, pelo menos é assim que se apresenta esta indução abstrata no Doutor Fausto. Uma cultura capaz de produzir apóstolos do sublime como o divinal Johann Sebastian Bach, Beethoven e mesmo Goethe foi a mesma cultura forçada a testemunhar a sua decadência e humilhação nos momentos posteriores aos conflitos mundiais. Junta-se a Prometeu uma outra alusão mitológica, nomeadamente Ícaro com a sua vontade de chegar ao Sol, sendo o Paladino do espírito ocidental uma Alemanha que havia ultrapassado a adversária França no encalço do Belo e civilizado.

Talvez seja esta a reflexão que melhor ajude a compreender as deliberações de Adorno no seu momento quase disciplinar na Escola de Frankfurt onde o musicólogo polemiza em 1949 n´ “A filosofia da música moderna” contra a beleza em si, pois o belo havia se tornado parte da ideologia da sociedade capitalista avançada, alegando que a falsa consciência que contribui à dominação social. Segundo Adorno o belo contribuía para a presente sustentabilidade do capitalismo por retribuir com uma “estética gentil” e “concordável”. Iniciava-se assim o ataque ao belo, pois a produção artística precisava de servir como outro agente político e social.

“Que percepções radicais da música são o não transfigurado sofrimento do homem […] O registro sismográfico de choques traumáticos torna-se, ao mesmo tempo, lei estrutural técnica da música. Isso proíbe a continuidade e o desenvolvimento. A linguagem musical é polarizada de acordo com o seu extremo; em direção a gestos de choques a convulsões do corpo em uma mão e na outra em direção a uma cristalina paralisação do ser humano cuja ansiedade causa congelar nas suas sequências[…] A música moderna vê o absoluto oblívio como o seu objetivo. Essa é a mensagem sobrevivente do desespero do náufrago.” – Adorno, filosofia da música moderna

Esta visão de arte moderna como verdade produtora, apenas através da negação da forma e normas estéticas tradicionais de beleza, porque elas tornaram-se ideológicas, é característica de Adorno e da Escola de Frankfurt em geral.

Theodor Adorno é responsabilizado quase exclusivamente pelo ataque estruturado ao belo na música, primeiramente pela sua crítica relativamente ao distanciamento artístico face ao consciente coletivo das grandes massas e também pelo seu engenho na composição, onde procurou novas formulações musicais, com técnicas hodiernas onde tentava relativizar tonalidades. (Existem mesmo teorias insólitas desenvolvidas com a ideia que havia sido Theodor Adorno o criador das melodias que popularizaram os Beatles.)

Todavia, um aspeto revela-se incontornável, precisamente por ser factual. Se as paixões de S. Mateus de Bach ou as sinfonias de Beethoven (poupando ao leitor a enumeração dos restantes nomes maiores da música) representaram o ápice vertiginoso da música na relação do homem com o transcendente, então o momento cultural que hoje temos com o fenómeno da música popular, representa precisamente o inverso. Nunca o homem esteve tão próximo da bestialidade e do feio horrendo. Começa a ser repugnante o que se consome musicalmente pela maioria ocidental, pelo menos o que se valoriza comercialmente, (aspeto que invalida a conceção de belo como componente ideológica do capitalismo), portanto sendo testemunha do meu tempo posso afirmar sem grande embaraço que Theodor Adorno serviu muito mal a humanidade, apesar de ter servido aparentemente muito bem a Escola de Frankfurt e o escritor Thomas Mann.

Se o belo faz guerra e o feio faz paz, o problema da existência apenas se complica. Imagina leitor o que seria se tudo no mundo fosse uma mentira que passa despercebida. 

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