To argue with a man who has renounced the use and authority of reason is like administering medicine to the dead”;

Thomas Paine in American Crisis (1776)

Duzentos e quarenta e quatro anos depois desta frase ter sido escrita, poucas questões trazem um debate mais acesso, com emoção e irracionalidade à mistura, do que o assunto fracturante do aborto. Recentemente fez cerca de um ano que o governador do Alabama assinou a mais restritiva lei “anti-aborto” dos EUA. A nova lei proíbe o aborto, mesmo no caso de violação e torna o aborto num crime de Classe A, punível até 99 anos de prisão. Sempre que o assunto aborto é levantado já é expectável debates acalorados; se é que podemos chamar de “debate”, um lado constantemente a demonizar o outro enquanto usa e abusa dos velhos “ad hominem”, “straw-man argument” e slogans do costume numa tentativa falhada de refutar os argumentos dos seus oponentes. Naturalmente, quanto mais fracturantes as questões a serem debatidas, mais difícil será ter um debate racional e frutífero e consequentemente chegar a um consenso sobre o que constitui uma postura moral e razoável numa questão tão controversa. Deveria ser escusado dizer que uma questão que envolve dimensões tão distintas e profundas: – filosófica, moral, científica, antropológica, política e jurídica (apenas para citar algumas), deveria ser considerada meramente através do uso da razão, numa perspetiva ciêntifica e ética e com uma argumentação lógica, deixando a emoção de lado; para que se possa pensar adequadamente sobre as raízes dessa mesma questão e suas consequências. Infelizmente, não é isso que vemos acontecer.

Numa questão desta dimensão, se um lado domina o espaço e opinião pública com slogans, argumentação medíocre, raciocínio primário e sem nenhuma base forte para as suas posições, enquanto demoniza a sua oposição, esse mesmo lado pode de forma legítima e equivocada achar que estará a pensar e agir corretamente, mesmo que não esteja a pensar de todo e talvez com grandes consequências.

Quando o assunto do aborto é abordado, é muito comum ouvir “argumentos” / slogans não persuasivos do lado “pró-escolha”, que se encontram geralmente padronizados do seguinte modo: “O meu corpo, minha escolha” ou “és um homem, não tens o direito de dizer o que faço ou deixo de fazer com o meu corpo ”; Independentemente de quão bizarras tais afirmações possam parecer, já que sempre que quando uma mulher está grávida de maneira feliz e voluntária, nunca ninguém interpela educadamente a mãe:“ como está o teu corpo? ” mas “como está o bebê?”, já que ninguém considera um feto, como sendo meramente uma parte do corpo da mãe, como um apêndice ou um rim; Se tal não fosse verdade, não haveria qualquer questão quanto à ilegitimidade de induzir um aborto segundos antes do parto. Além de que, o uso do argumento da autoridade usualmente utilizado: “somente as mulheres podem falar sobre o aborto” é uma falácia em si mesma; Uma vez que pode-se facilmente aplicar esse tipo de pensamento para um assunto distinto e concluir o quão ridículo esse argumento é: “Nunca viveste durante a escravidão, não podes falar sobre a imoralidade da prática da escravatura” ou pegando no outro “argumento” habitualmente utilizado de “O meu corpo, as minhas regras”:  – “ Um escravo é minha propriedade e está em minha propriedade, não podes decidir o que devo ou não fazer com minha propriedade ou se é ou não uma vida humana ou não ”. Do outro lado, também podemos ouvir certo tipo de declarações também padronizadas, como: “eles querem usar a prática de matar bebés como um método contraceptivo”

Indo ao cerne da questão moral, pode-se resumir o assunto da moralidade da questão pelo simples facto se se trata ou não de uma vida humana. Dito isto e de forma resumida, podemos inferir o seguinte: “- Se é uma vida humana, não se pode matá-la. Se não é uma vida humana, pode-se fazer o que quiser, como um órgão, apêndice etc.”. Assim, numa primeira instância deveríamos começar por pensar no seguinte: “o que define uma vida humana?”. Recorrendo a uma analogia: – se imaginarmos um cenário hipotético num futuro próximo, em que um astronauta encontraria um único organismo celular em Marte, ouviríamos em todos o lado de que ” tinha sido descoberta vida em Marte”, por outro lado, é comum ouvirmos do lado “pró-escolha”, que um feto é apenas um aglomerado de células. Mesmo que consideremos esta afirmação verdadeira, tendo em consideração que a ciência pode dizer-nos que um zigoto não é capaz de sentir dor, também devemos reconhecer que, assim que o óvulo é fertilizado, ele possui um ADN único, irrepetível e singular; mesmo que alguém não reconheça que se trata de uma vida humana, pode pelo menos reconhecer que se trata potencialmente de uma vida humana. Usando de novo a analogia para reflexão: se fosse encontrada uma cura que poderia salvar a vida de milhões de pessoas, ninguém sensato argumentaria sobre a inconveniência dessa mesma cura, justificando que não saberíamos se essas vidas poderiam ter uma vida ausente de pobreza ou qualquer outro tipo de tribulações inconvenientes; porque mesmo que não se trate de uma vida humana viável ou até se trate apenas potencialmente de uma vida humana, esta não deixa de ser vida humana consoante a conveniência de uma dada situação ou de alguém terceiro a essa vida. Portanto, se queremos de facto, abordar a questão adequadamente, esta não deve ser tida somente numa base científica / biológica, mas também numa dimensão conceptual: “quando começa a personalidade de uma vida humana?”.

Se considerarmos a idade generalizadamente aceite do que constitui a idade de consentimento sexual, a ciência diz-nos, por exemplo, a idade em que os seres humanos atingem a maturidade sexual (antes dos 18 anos) ou a idade em que o córtex pré-frontal se desenvolve completamente (depois dos 18), no entanto, a ciência não pode nos dizer conceptualmente quando uma criança/adolescente se transforma num adulto. Os factos biológicos são muito relevantes para esta questão específica, mas não respondem por si só inteiramente à questão; não porque a ciência o diga, e não porque ocorre algum momento de transformação instantânea durante esse período da adolescência, mas porque tendo por base todos os aspectos éticos relevantes parece-nos razoável assim definir que a idade de consentimento sexual é a partir dos 16 / 17 anos / 18 anos (dependendo dos países).

A linha que divide entre o que é considerado um “aglomerado de células” e uma “pessoa” pode ser mais ou menos semelhante neste aspecto.

Através da ciência podemos descobrir muitos factos importantes, neste assunto em específico: a partir de que momento um feto pode sentir dor ou através de que momento é que um “feto” /bebé pode sobreviver fora do útero. Mas, a ciência não nos consegue dizer com qualquer tipo de exatidão quando é que um “aglomerado de células” se torna o que entendemos por “uma pessoa” ou se é uma pessoa desde o momento da concepção; a resposta a estas questões éticas depende de nós, através de uma visão conceptual e ética e não apenas através de uma lente materialmente objetivista da ciência. Neste sentido, a questão vista deste prisma desafia ambas as posições contrárias da questão; Pois, a ciência a não nos pode dizer quando a personalidade (características que constitui uma pessoa) começa, uma vez que todas as dimensões eticamente importantes do que constitui “ser uma pessoa” (experiência consciente, capacidade de sentir dor, capacidade de crescimento autossustentável) ocorrem em algum momento durante o processo. A maioria das características relevantes para a constituição de “personalidade” surge de forma gradual durante a fase de desenvolvimento.

Por sua vez, se definirmos a constituição de “personalidade” humana através da capacidade de “sentir dor”, ter batimento cardíaco, ou estar consciente, podemos facilmente delinear diferentes analogias que consolidam o argumento ético do lado “pró-vida”: ex: “se  uma pessoa estiver em coma (portanto inconsciente) não é moralmente aceitável tirar a vida dessa pessoa apenas por ser um “fardo” ou um inconveniente”; ou ex. – “se alguém tiver um pacemaker ou sofrer uma paragem cardíaca , a vida dessa pessoa não deixa de ser subitamente uma vida humana”, assim nunca seria aceitável acabar com a vida dessa pessoa meramente com base no argumento do batimento cardíaco sustentável.

De cada vez que se define uma linha a partir dos argumentos tipicamente usados do lado “pró vida” de forma a legitimar a prática do aborto, não conseguimos estabelecer qualquer argumento moralmente aceite para uma vida humana noutra fase de desenvolvimento, tendo por base as mesmas condicionantes pré concebidas, acerca do que seria necessário para a definição do que é que constitui uma vida humana / “personalidade” ou quando seria eticamente aceitável termina-la.
Assim, de forma a tornar o argumento do lado “pró vida” mais convincente, este deveria ser usado numa óptica meramente utilitarista  – “poderão os meios por vezes justificar os fins?”. Uma vez mais, usando o argumento de situação limite usualmente utilizado: “Se alguém for violado deve ser obrigado a carregar essa gravidez que é fruto de uma experiência trágica e traumática?”. Embora “um mal não justifique outro”, qualquer pessoa pode facilmente sentir compaixão pela pessoa visada (vítima da violação) e perceber que por vezes situações limite podem justificar uma dada motivação para ação e consequentemente questionarmo-nos se a legalidade e a moralidade devem andar de mãos dadas de forma categórica?!
Voltando à questão retórica inicial, que deveria ser a base para um debate racional num assunto emotivo e fracturante: “Quando começa uma vida /”personalidade” humana ?” ou “é uma vida humana?”.

Cabe-nos a nós responder a esta questão, não apenas numa perspectiva científica / biológica, mas contrabalançando com argumentos fundamentalmente éticos e conceptuais, que tenham por base um pensamento racional e lógico e não argumentos meramente emocionais e falaciosos sob a capa dos habituais slogans de autómatos.

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