Não será precipitado afirmar que o clima fraturante e divergente que caracteriza a contemporaneidade ocidental se revela das poucas observações consensuais e admissíveis em qualquer diálogo ou comentário reflexivo sobre a atualidade. Evidentemente que se podem estabelecer comparações com outros momentos capitulares na história do ocidente, basta revisitar a turbulência política que opôs os girondinos contra os jacobinos e a reformulação dos ideários políticos na altura para verificar semelhanças gritantes.

Edmund Burke, convencionalmente considerado como o pai do conservadorismo, influenciado por David Hume e Adam Smith, advertiu que a sociedade obedece a uma ordem de complexidade tão profunda que nenhuma mente, por mais refinada que seja, pode compreender completamente todas as suas partes entrelaçadas. Foi com base nesta compreensão dilemática que Burke atacou a filosofia radical do Iluminismo francês, pois considerava a tradição, os costumes e as maneiras que formam as nossas instituições sociais como inestimáveis, pois representavam um depósito de sabedoria das eras antecedentes estabelecendo uma preponderante relação entre o passado e o presente. No entanto os franceses motivados pela efervescência jacobina rejeitaram esse conhecimento implícito como superstição, procurando reordenar a sociedade de acordo com teorias abstratas, o que o herdeiro intelectual de Burke, F. A. Hayek, chamaria de construtivismo.

A rigidez binária com que tendencialmente percecionamos a realidade produz consequentemente uma conceptualização dicotómica nos fenómenos ideológicos, uma espécie de oposições inconciliáveis. Esta superficialidade pouco dispendiosa seduz os indivíduos que procuram explicações fáceis de digerir e igualmente fáceis de exteriorizar. Mais que um outsourcing informativo, existe uma insuprível procura de opiniões e convicções, ou seja, nem a intelectualidade escapa à excessiva materialização do pensamento, sendo que ideias e valores parecem ter sido despromovidas para a condição que caracteriza os produtos dispostos em prateleiras.

“A maioria das pessoas são outras pessoas. Os seus pensamentos são opiniões de outra pessoa, as suas vidas uma imitação, as suas paixões uma citação.” Oscar Wilde

Walter Lippmann, hoje um autor clássico nos estudos de jornalismo deixou em 1922 a sua maior contribuição, nomeadamente “Opinião pública” um livro que tinha a intencionalidade de refletir sobre a burocratização, a impessoalidade das relações sociais na nova sociedade industrial e a complexidade dos problemas que impediam que um indivíduo pudesse atuar ativa e conscientemente no cenário político e social como propunha a teoria democrática.

Lippmann denunciou a influência de grupos poderosos na administração da opinião pública, sendo que nesse novo ambiente (repare leitor que estamos a falar do início do século XX) o que estava em jogo era o “pseudo-ambiente”, ou seja, as imagens criadas indiretamente pela ação da comunicação social e dos noticiários nos nossos mapas mentais. Sendo essas as imagens estereotipadas da realidade que controlam os afetos e os rancores que determinavam o humor do público, logo estes humores não seriam resultantes da capacidade cognitiva do indivíduo e sim da manipulação e administração do consenso social pelas partes interessadas.

Lippmann afirma que a figura do cidadão se confundiu com a do consumidor e aponta a dissonância entre um mundo exterior e a imagem do mesmo nas nossas mentes, argumentando que o cidadão conhece apenas uma imagem limitada da realidade e dos fatos.

Isso ocorre tanto devido a inúmeros fatores como barreiras estruturais, limitações da imprensa, diferentes modalidades de censura, limitações no contato social, o pouco tempo disponível para se dedicar aos assuntos públicos, distorção dos acontecimentos, dificuldade de expressão por meio da linguagem, como também devido à própria natureza da mente humana, incapaz de lidar com todas as nuances e subtilezas do mundo. É nesse ponto que o autor cunha a ideia de estereótipos, espécies de categorias fixas utilizadas pelos sujeitos para fazer sentido sobre os diferentes aspetos do mundo.

 “Como podemos encontrar o caminho das coisas se já nos disseram tudo antes que as experimentássemos? Como é que nos salvamos dos preconceitos penetrantes que governam o nosso processo de perceção? Onde começam as nossas ideias sobre as coisas? Porque as aceitamos? Como chegaram até nós?” – Ecléa Bosi

Lipmann conclui de forma contundente considerando fundamental abandonar a figura mitológica de um cidadão omnicompetente, repensando o papel dos públicos na democracia. Foi neste exercício que aprimorou a ideia da existência de múltiplos públicos que apesar de fundamentalmente voláteis, manifestam-se em determinados períodos, opinando sobre situações controversas. O autor constata que o público é uma abstração, não podendo ser considerado como “um corpo fixo de indivíduos, sendo meramente pessoas que se interessam sobre um determinado problema e que podem, pelo seu apoio ou oposição, influenciar no mesmo”. Abstrato, o público de Lippmann é também inexperiente na sua curiosidade, capaz de discernir apenas distinções binárias e simplificadas. Possui um lento despertar e rapidamente perde o foco sobre o problema em questão, ainda mais grave: é extremamente dependente dos meios de comunicação, especialmente da imprensa e da propaganda, para a formação das suas opiniões o que acentua as suas limitações.

“A imprensa é muito mais frágil do que a teoria democrática já admitiu. É demasiadamente frágil para carregar todo o peso da soberania popular e fornecer espontaneamente uma verdade que os democratas gostariam que fosse inata” – Walter Lipmann

Uma importante figura que participou neste diálogo iniciado por Lipmann engradecendo a investigação crítica deste assunto foi o seu contemporâneo filósofo e pedagogista norte-americano John Dewey, um dos principais representantes da corrente pragmatista. Dewey afirma concordar com as premissas iniciais da análise apresentada, mas não com as conclusões do autor, sendo o aspeto central da divergência entendimentos distintos acerca da democracia.

Para entender o conceito de democracia de Dewey é preciso partir de uma distinção por ele mesmo operada. Trata-se, por um lado, de distinguir a democracia como uma ideia e, por outro lado, como um sistema de governo. À democracia enquanto um sistema de governo Dewey chama de democracia política. Mas é a “ideia de democracia” com que Dewey está mais preocupado, ainda que ambos os conceitos estejam intimamente relacionados. A democracia como uma ideia pretende aludir à disposição, ou seja, acreditar que a democracia é um modo de vida, algo que transcende o Estado, pois ela encontra-se em todos os modos de associação humana dentro da comunidade, afetando-os reciprocamente. Para que a ideia de democracia seja realizada ela precisa de produzir efeitos sobre a família, a escola, a religião e o trabalho, além de outras formas de associação humana. Nesse sentido, a “democracia política” – isto é, a democracia como um sistema de governo – com os seus contornos políticos e instituições governamentais – consiste meramente num mecanismo destinado a assegurar canais de operação para a “ideia” de democracia. Eventuais reprovações e mesmo modificações da “maquinaria” da democracia política não podem afetar a “ideia”, pois esta deve sempre permanecer intocável. Em síntese a democracia enquanto forma de governo, ou seja, a “democracia política”, pode a qualquer momento ser revista e modificada, sem que isso afete a ideia de democracia.

A democracia afigura-se então como um modo de vida pessoal comandado não apenas pela fé na natureza humana em geral, explica Dewey, mas pela fé na capacidade de os seres humanos terem discernimento e uma ação inteligente. No entanto, a inteligência é uma potencialidade presente em todos os seres humanos que nunca estará plenamente desenvolvida sem a educação. Assim como a educação é essencial para a constituição da comunidade, ela é também essencial para a consolidação da democracia. A capacidade intelectual do homem comum para responder satisfatoriamente aos problemas sociais deve ser desenvolvida não somente pelo meio pedagógico, mas também através da prática quotidiana do exercício de cidadania numa sociedade democrática. Logo é fundamental assegurar aos indivíduos a plena oportunidade de interagir, discutir e deliberar publicamente a respeito dos problemas que envolvem a sua comunidade, uma particularidade que ainda não conheceu apropriação na nossa atual conjuntura com a disrupção das redes sociais.

Mais do que compreensões distintas relacionadas com a democracia, Dewey e Lippmann possuíam visões divergentes sobre a própria essência do processo comunicativo. Os diferentes modos de ver dos autores sobre a comunicação eram refletidos diretamente na compreensão dos mesmos sobre a natureza dos públicos. A ideia de públicos para Dewey principia na compreensão que o ser humano não é um espectador passivo, mas, naturalmente,

um participante ativo por meio da própria atividade da comunicação, sendo consumada na experiência e dotada de duas dimensões: o sofrer e o agir. O público inicialmente sofre e um conjunto de pessoas é afetado indiretamente por um acontecimento ou uma determinada situação, e é a partir dessa afetação e da interação entre os sujeitos que se institui o público.

Porém, o público não se limita a assistir passivamente aos acontecimentos, pois quando afetado, ele reage. O público posiciona-se perante aquilo que o afeta, produzindo e compartilhando sentidos, adotando comportamentos e fazendo escolhas, assumindo, portanto, um papel de agente. Ora Dewey volta a convocar a mesma fé que já exploramos no parágrafo anterior no poder de agência do público e na sua inteligência, decorrente da crença numa capacidade reflexiva e ponderada dos sujeitos algo que marca profundamente a obra do autor e as suas sugestões pedagógicas, onde ele afirma que o objetivo da educação é capacitar o indivíduo para continuar a sua educação. Apesar desta crença Dewey concordava com o diagnóstico de Lippmann sobre a delicada situação do público na democracia da sua época, cada vez mais alienado, aturdido e incapaz de lidar com as suas responsabilidades democráticas. Recorrendo à terminologia de Dewey, tal situação poderia ser entendida como um eclipse do público.

Ambos os autores voltam a divergir nos motivos que justificam esta decadência reflexiva. Para Lippmann o cerne da questão verifica-se nas limitações dos próprios públicos, a sua incapacidade compreender o mundo com a complexidade necessária para tomar as decisões que supostamente lhes haviam sido incumbidas pelo ideal democrático. Nessa perspetiva, o público assemelha-se a um fantasma, algo que paira sem uma forma definida e cuja ação é sempre questionável. Já Dewey analisa o problema numa ótica distinta. Para ele, a responsabilidade do eclipse do público não recai sobre o próprio público, mas sobre o contexto social, cultural e político. O eclipse é causado pelas mudanças sociais que resultaram na perda da comunidade sobre a qual as bases democráticas eram construídas.

E é com esta dualidade convidativa que regressamos ao pensamento de Edmund Burke que ao deparar-se com os acontecimentos que se desencadearam em 1789, na França, chegou à conclusão de que aquela revolução não era do mesmo teor das que aconteceram na Inglaterra e nos Estados Unidos décadas antes. A Revolução Francesa, para Burke, era mais do que uma revolução política, era uma revolução de caráter total, de rutura brusca e violenta com os antigos costumes e com a tradição.

Burke acusou os franceses de terem deformado a imaginação moral. Para ele, a imaginação moral fundava a consciência prática que capacitava o ser humano ao juízo e à intuição do que é razoável. Era dessa característica que vinha a capacidade do ser humano de se compadecer do próximo. O que a Revolução francesa promovia, segundo o pensador irlandês, era a minuciosa destruição dessa capacidade. Condenou veemente a ação revolucionária por obedecer a um “princípio de preguiça”, ou seja, a preguiça de quem é incapaz de pacientemente estudar e reformar a comunidade real, optando antes por “atalhos” e pelas “facilidades falaciosas” da destruição e da recriação totais.

“É impossível estimar a perda que resulta da supressão dos antigos costumes e regras de vida. A partir desse momento não há bússola que nos guie, nem temos meios de saber a qual porto nos dirigimos. A Europa, considerada no seu conjunto, estava sem dúvida numa situação florescente quando a Revolução Francesa foi consumada. Quanto daquela prosperidade não se deveu ao espírito dos nossos costumes e opiniões antigas não é fácil dizer, mas, como tais causas não podem ter sido indiferentes aos seus efeitos, deve-se presumir que, no todo, tiveram uma ação benfazeja” – Edmund Burke

No entanto revela-se preponderante ressalvar que a conservação proposta por Burke na política, nunca se baseou na manutenção do status quo. Burke definiu a política como um exercício em que é preciso respeitar “um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de transmissão, sem excluir um princípio de melhoria. Conservação, transmissão e melhoria, logo seguiriam uma ordem lógica e não arbitrária. O que admoestou Edmund Burke no seu tempo foi a perigosidade da ideia de plasticidade do mundo e da natureza dos homens, como se ambos pudessem ser objeto de transformação radical.

É quase escusado concluir (por tão evidente que se revela) que esta também é a inquietação mais gravosa da nossa contemporaneidade, complementada pela manipulação dos públicos e a ausência da compreensão democrática, só que ao atual paradigma, inclui-se ainda um contexto pandémico e o prólogo da inteligência artificial. Porém é ao indivíduo que compete a tarefa de refletir sobre a sua ação e os valores que a orientam e revoltar-se perante a realidade que o envolve. Ele «é a única criatura que recusa ser o que é» como dizia Albert Camus, ainda que no mundo mais nada faça sentido, parece-me igualmente consensual que o individuo é a evidência a preservar.

“Avalia-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar. “ – Immanuel Kant

Walter Lippmann à esquerda e John Dewey à direita
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Pedro Augusto Martins
Pedro Augusto Martins
3 anos atrás

Excelente síntese e prólogo para uma discussão sobre a actualidade! Força, continuem!