Acredito que não será problemático ou pelo menos material suscetível de ser polemizado, se afirmar que existem duas classes de problemas nas quais o homem tem obtido respostas claras, sendo a primeira, referente ao domínio das ciências naturais, onde, em principio, as respostas vêm da observação “organizada” e revelando-se a segunda classe, referente ao domínio das ciências formais (matemática, lógica formal), onde as respostas provém da dedução bem conduzida de proposições denominadas como axiomas.

A ladear essas duas categorias, no entanto, existem questões dúbias que se encontram fora do perímetro dessa clareza, estou a falar concretamente das questões filosóficas, ou seja, as questões ou assuntos que não dispõem de regras claras a visar a obtenção de respostas igualmente inequívocas. É neste território marginal que se encontram as tipicidades características da filosofia política ou (academicamente popularizada) teoria política normativa.

A expressão “teoria política”, quando usada de forma ampla, remete a uma variedade de tipologias de teoria dentro da ciência política. Quando usada de forma específica, remete a uma disciplina comumente bifurcada no contexto angloamericano em teoria política normativa e história do pensamento político.

As teorias empíricas, numa explicação generalista e consideravelmente sintetizada, concentram-se na construção de explicações baseadas em factos observáveis, isto é, em estabelecer relações causais entre os fatores responsáveis (variáveis independentes) e o fenómeno a ser justificado (variáveis dependentes).

No âmbito da história do pensamento político, a teoria é vista como uma atividade de análise das obras clássicas com o intuito de estabelecer o sentido original dos textos, recapturando assim, a visão política de cada autor em contextos históricos distintos. Destacam-se nessa área visões metodológicas diversas acerca da interpretação histórica, alguns exemplos proeminentes são a “Escola de Cambridge” de Quentin Skinner e J. G. Pocock e a alemã “História dos Conceitos” (Begriffsgeschichte) de Reinhart Koselleck.

Reinhart Koselleck foi um historiador alemão do pós-guerra, destacando-se como um dos fundadores e o principal teórico da história dos conceitos.
Quentin Robert Duthie Skinner é um historiador britânico, conhecido como um dos principais integrantes da Escola de Cambridge.

Porém foi Isaiah Berlin quem melhor descreveu este conceito de teoria política normativa quando alegou que as respetivas teorias envolvem “a descoberta, ou aplicação, de noções morais na esfera das relações políticas”. Ou seja, a teoria política normativa aparece como análise e promoção de conceitos, entre outros, como “direitos”, “justiça”, “igualdade” e “democracia”. Nessa forma particular, a teoria assume a forma de filosofia prática.

As raízes da teoria política normativa contemporânea conseguem-se encontrar na longa história da filosofia política e moral que remonta até ao período helénico. Foi durante esse período prolífero que questões sobre a “boa” vida e a ordem política apta a promovê-la, e a procura de um ponto de referência moral segundo o qual nossas práticas políticas e instituições possam ser criticadas, têm ocupado os filósofos. Com uma história tão longa, a reflexão normativa passou por muitas mudanças e crises, entre as quais, talvez a mais contundente, ocorreu ao longo da primeira metade do século XX no clima filosófico promovido pelo positivismo lógico.

Isaiah Berlin foi um teórico social, filósofo e historiador das ideias.

Foi sob a alçada do positivismo lógico que as questões relacionadas com a filosofia política se consideraram algo redundantes ou mesmo irrelevantes, devido à promoção de uma reavaliação das bases, ou seja, o entendimento do conhecimento válido ou objetivo, pois neste movimento intelectual separou-se conceptualmente facto de valor (dualidade objetivo/subjetivo). Com esta distinção, todo o conhecimento possível do mundo provinha de generalizações de experiências empíricas particulares e mesmo as abstrações lidavam em última análise com factos. A única outra forma alternativa de conhecimento válido seria a lógica, advinda do conhecimento matemático, pela qual se organizariam as relações entre as ideais oriundas da experiência.

Sendo os factos a única fonte confiável de conhecimento, que nos informariam apenas como o mundo é e não como deveria ser, qualquer juízo de valor passou a ser considerado irracional, apenas uma expressão emotiva convencional. Questões sobre a melhor ordem política convidando o exercício moral, foram considerados erros quanto ao que se entendia por conhecimento válido ou objetivo. É fácil entender a carga restritiva imposta à atividade da filosofia política neste cenário. Erradicando todas as questões consideradas “especulativas” e “ilusórias” da filosofia, a exemplo das questões tradicionais da filosofia política, ao filósofo, portanto, competiria somente uma instância limitada diante das descobertas da ciência. Localizando-se a investigação empírica na província científica, ao filósofo restaria apenas a investigação, no plano da lógica, das relações entre conceitos, basicamente uma tarefa de análise linguística.

Com este clima intelectual instaurado chegou-se mesmo a sentenciar a morte da filosofia política e a inviabilidade de qualquer teorização normativa. É o que atesta o famoso ensaio publicado por Peter Laslett em 1956, no primeiro volume de uma coletânea “Philosophy, Politics and Society”, onde o autor afirma que a tradição que vinha de Hobbes a Bosanquet havia sido interrompida. A filosofia política, segunda o autor, estava morta.

Philosophy, politics and society Livro por Peter Laslett

Foi Ludwig Josef Johann Wittgenstein o filosofo disruptivo que ofereceu inesperadamente uma alternativa ao positivismo lógico no plano da epistemologia. Contrariando o projeto do positivismo lógico, incluído os seus próprios estudos iniciais, Wittgenstein passou a duvidar que a linguagem tivesse significado quando expressasse ou “mapeasse” os elementos sensíveis de uma experiência prévia. Em oposição Wittgenstein, propunha que a linguagem, na realidade, era ela própria a responsável pelo caráter cognoscível do mundo.

Nesta visão, a linguagem constitui a realidade e qualquer atividade de análise da linguagem pela filosofia deveria recair não só sobre a linguagem oriunda do discurso científico, mas também sobre as várias outras formas de linguagem pelas quais, também, o mundo se torna inteligível como as artes, religiões e ideologias.

Esta mudança de perspetiva na filosofia analítica, conhecida com “desvio pragmático”, ocasionada por Wittgenstein, promoveu a teorização normativa ao incluir novamente o elemento normativo como parte no horizonte das análises filosóficas das linguagens constitutivas da realidade inteligível. A força normativa presente na linguagem moral e política passa a ser novamente levada a sério.

Ludwig Joseph Johann Wittgenstein foi um filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos principais autores da virada linguística na filosofia do século XX.

No plano específico da teoria política, Isaiah Berlin argumentou contra o reducionismo positivista do conhecimento válido (empírico ou lógico) pontuando a existência de questões que não podem ser resolvidas nos moldes das ciências naturais ou formais, tais como as da filosofia política.

Acrescentou-se a esse novo clima filosófico favorável ao pensamento normativo, um outro ingrediente importante, nomeadamente a urgência política que definiu a segunda metade do século XX. Novas ameaças pairavam no contexto da segunda metade do século XX. A realidade das armas nucleares da guerra fria mostrou a imprecisão de qualquer fé utilitarista – perspetiva moral até então dominante na filosofia política – na redução gradativa da reflexão dos problemas morais consequente do avanço técnico da humanidade. Ficava cada vez mais clara a necessidade da discussão dos fundamentos morais de novas ideias. Os direitos humanos e os crimes contra a humanidade alegados nos julgamentos de Nuremberg, a questão dos crimes de guerra no Vietname e as reivindicações dos movimentos de direitos civis nos EUA são alguns exemplos entre muitos disponíveis que convidavam ao pensamento de maior envergadura quanto aos fundamentos morais da política.

Neste cenário, precisamente em 1971, apareceu o livro de John Rawls reacendendo – agora no contexto americano – a possibilidade de um pensamento filosófico respeitável sobre os fundamentos da associação política. Uma Teoria da Justiça logo se tornou objeto de controvérsias. Foi atacada, defendida, reformulada, imitada, transformando drasticamente o cenário intelectual de tal forma que não pode ser ignorada. O argumento rawlsiano preparou uma explosão de teorização académica sobre os fundamentos morais da política.

John Rawls foi um professor de filosofia política na Universidade de Harvard, autor de Uma Teoria da Justiça, Liberalismo Político e O Direito dos Povos.

Como advertiu Berlin na sua obra “Dois conceitos de liberdade”, negligenciar a teoria política é estar “à mercê de crenças políticas primitivas e não criticadas”. Considerar as instituições sociais e os arranjos políticos sem a reflexão dos princípios organizadores adequados pode até levar a um entendimento do seu funcionamento, mas escassamente ajudará a informar um julgamento de adequação e desejabilidade.

É aí que a teoria política normativa se apresenta como um meio para um tratamento lógico rigoroso das nossas “opções morais”. É evidente que nunca se consegue antecipar uma certeza de que a mudança promovida pela teoria política será sempre para melhor, dado que as opções são inúmeras e nem sempre as mais adequadas. Todavia, ocupar-se da teorização normativa é partir da esperança de que os atores morais que debatem as suas opções de forma aberta e consciente cometerão, no final, menos o que a maioria das pessoas reprovaria do ponto de vista moral do que aqueles que procedem irrefletidamente ou suprimem o debate moral.

A primeira formulação explícita da ideia de pluralismo é atribuída a Isaiah Berlin, essencialmente o pluralismo de valores vindica a noção de que os valores humanos são irredutivelmente plurais, frequentemente conflituantes e às vezes incomensuráveis entre si, isto é, radicalmente distintos e insuscetíveis de uma medida comum ou hierarquização. Um exemplo frequente é o conflito entre os valores de “liberdade” e “igualdade” onde não encontramos um denominador comum apto a medi-los, restando, portanto, uma “escolha difícil” realizada sem qualquer regra prévia onde algum grau de perda se revela inevitável

A realidade moral do pluralismo expõe princípios que sugerem implicações políticas liberais, pois é da perceção da inevitabilidade das escolhas entre os fins incomensuráveis, como observa Berlin, “que os homens atribuem um valor tão imenso à liberdade de escolha”.

É conveniente ressalvar que a relevância filosófica para uma formulação explícita quanto ao pluralismo só emerge a partir dos ensaios de Berlin da década de 50, no contexto da Guerra Fria. Nada, ou quase nada, nos escritos iniciais de Berlin é explícito quanto ao pluralismo. É só com o final da Segunda Grande Guerra, na tentativa de compreensão do “totalitarismo”, e em específico, do combate ao comunismo soviético entendido como uma forma de “monismo”, que Berlin desenvolve a ideia de pluralismo justamente pela identificação do seu oposto, o monismo, a crença de que:

“em algum momento, no passado ou no futuro, na revelação divina ou na mente de um pensador individual, nas declarações da história ou da ciência, ou no coração simples de um homem bom não corrompido, existe uma solução final. Essa antiga fé baseia-se na convicção de que todos os valores positivos em que os homens têm acreditado devem ser afinal compatíveis, e talvez até ocasionarem-se uns aos outros”

Se a crença numa harmonia definitiva é uma falácia e os insights de pensadores como Maquiavel, Vico e Herder são válidos, os grandes bens da humanidade podem entrar em conflito e alguns, ainda, podem ser mutuamente excludentes. Se “não se pode ter tudo, tanto em princípio como na prática”, o que resta para a humanidade são escolhas:

“Se, como acredito, todos os fins humanos são muitos, e nem todos são em princípio compatíveis uns com os outros, então a possibilidade de conflito – e de tragédia – jamais pode ser inteiramente eliminada da vida humana, pessoal ou social. A necessidade de escolher entre reivindicações absolutas é, portanto, uma característica inevitável da condição humana – Berlin”

Assim, se estamos fadados a escolher, sob o risco de perdas irreparáveis, temos uma objeção fatal “à noção do Estado perfeito como o objetivo apropriado dos nossos esforços”. Não há uma situação de equilíbrio perfeito, “toda a solução cria uma nova situação que gera as suas novas necessidades e problemas, novas demandas”.

Do ponto de vista da política, portanto, a escolha enquanto “característica inevitável da condição humana”, deve ser assegurada; e o instrumento para isso é a garantia da liberdade negativa. O pluralismo acarreta uma “dose” de liberdade negativa. É por causa da realidade plural dos valores:

“que os homens atribuem valor tão imenso à liberdade de escolha; pois, se tivessem certeza de que em algum estado perfeito, alcançável pelos homens na Terra, nenhum dos fins por eles procurados jamais entraria em conflito, a necessidade e a agonia da escolha desapareceriam, e com elas a importância central da liberdade de escolha”

 

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