Confesso ao leitor que este livro me arrancou lágrimas profundas, em cada história relatada, um golpe lesante desferido num espaço dedicado à memória do meu povo. Contrastar uma valentia tão transcendente, uma coragem tão desapegada à mesquinhez terrena, com a atitude prostrada e letárgica que ornamenta o derrotismo que nos esmaga e nos impede de sonhar com a concretização da nossa sina vanguardista e demanda teológica, precipitou uma reflexão recorrente e uma interrogação corrosiva, nomeadamente, o que nos aconteceu? Onde se esconde a portugalidade e o atrevimento de entregar a vida pelo destemor da aventura e o confronto com o adamastor?

Rainer Daehnhardt ofereceu-me a narração real dos acontecimentos esquecidos nesses feitos epopeicos, que ainda hoje escandalizam os mais céticos historiadores. Estes portugueses foram veículos convocados por uma sabedoria maior, silencie-se o presentismo que hoje tenta vilipendiar semelhantes heróis, pois semelhante coragem de enfrentar o horizonte com saudade no olhar só está ao alcance de quem se move ao som de uma distinta melodia. Um português enfrentava um exército, pois ele conhecia o seu propósito e qual a demanda espiritual que lhe adornava a espada.

Estes são os antepassados que tenciono honrar, o anónimo que não foi rei na cidade dos homens, mas que ainda fala a quem tenciona ouvir, somos descendentes de homens valorosos e não o reflexo destes representantes carreiristas que vendem a pátria para engradecer reputação e comodidade. Portugal é uma ideia e uma dívida existencial que aquece o sangue nobre daqueles que sentem a pulsação da miragem.

Neste texto transcrevo três histórias deste livro, peço emprestado ao autor, pois isto tem de ser partilhado urgentemente. Espero honestamente que o autor não se importe, sei que é eticamente dúbio servir-me assim das palavras de outrem, mas tenho medo que o nosso fado nos conduza à indigna comiseração de esquecer o desígnio deste povo destemido.

DOIS PORTUGUESES NUMA NAU CHEIA DE TURCOS

Durante a batalha naval que D. Francisco de Almeida travou contra as armadas juntas dos turcos e seus aliados cambaios e indianos, deu-se um dos tantos episódios da história portuguesa merecedores de reflexão.

Na proa do navio de D. António de Noronha iam doze portugueses que se propuseram saltar logo para a nau turca que estavam a abalroar. A honra de ser o primeiro era o prémio máximo que se poderia obter nesta contenda, onde a cada português caberia mais de uma dezena de turcos! O navio português abalroou a nau turca com tanta violência que voltou para trás, tendo-se desviado do seu rumo. Durante o choque das duas grandes embarcações, cinco dos doze portugueses conseguiram saltar para a nau turca, confiantes de que os outros viriam também. O azar desviara uma nau da outra e impedira a execução do que estava planeado, encontrando-se assim, de repente e inesperadamente, cinco portugueses numa nau com centenas de turcos! Isto não os impediu de lutar ferozmente, mas a quantidade de flechas atiradas a curta distância acabou por feri-los todos, matando três.

Os dois portugueses feridos, mas sobreviventes decidiram vender caras as suas vidas, atacando como leões os turcos que os rodeavam, matando oito com estocadas rápidas. Manejaram as suas adagas na mão esquerda e as espadas na mão direita com tal rapidez e eficácia que a moirama se retirou da luta de corpo a corpo, permitindo que alcançassem abrigo por detrás de um tabuado.

Para o capitão turco era inaceitável a situação de ter a bordo dois inimigos feridos que os seus homens não podiam dominar. Ordenou-lhes sucessivos ataques por grupos de guerreiros experimentados e hábeis no manejo dos sabres, mas os portugueses repeliam todos os que se atrevessem a aproximar-se do alcance das suas espadas, ferindo muitos. A luta parecia interminável. Nos intervalos dos ataques com sabre vinham mais chuvas de flechas e tiros de mosquetes, chegando mesmo a disparar artilharia sobre eles.

Nisto, veio a nau de Martim Coelho, da qual estava a ser observada a heroica defesa dos dois bravos guerreiros lusos. A nau turca foi abalroada e invadida pelos portugueses que, embora em número muito inferior ao dos turcos, tal medo lhes causaram que, após pouca resistência, estes últimos se atiraram à água, tentando salvar-se.

Os dois companheiros estavam já caídos, tendo perdido muito sangue. Um tinha oito ferimentos de sabres e flechas e o outro também umas quantas e a perna esmagada por um pelouro.

Martim Coelho mandou-os recolher à sua nau onde foram tratados. Um chamava-se António Carvalho, ficou aleijado uma perna, mas passou a ocupar o lugar de Feitor de Calecute. O outro chamava-se João Gomes Cheiradinheiro e foi depois capitão das Ilhas Maldivas, onde acabou por morrer noutro combate contra os mouros.”

NÃO TENDO BALA, ARRANCOU UM DENTE, CARREGOU O MOSQUETE E DISPAROU

É por vezes nos relatos de estrangeiros, que há muitos séculos se debruçaram sobre a nossa história, que encontramos pormenores interessantes.

Narra-nos um padre holandês, Philippus Baldaeus, que acompanhou as armadas seiscentistas dos Países Baixos nas suas conquistas das praças portuguesas do Indico, uma história curiosa que, entretanto, também já consegui descobrir num relato português.

Durante o primeiro cerco de Diu, encontrou-se um soldado português como único sobrevivente num dos baluartes que os turcos estavam a atacar, em ondas sucessivas. Tendo já gasto todas as balas (esferas de chumbo), mas possuindo ainda suficiente pólvora para mais um tiro, e na aflição de nada mais ter com que carregar a sua espingarda, resolveu arrancar um dos seus dentes! Carregou com ele a arma e disparou-a contra o adversário surpreso, que já o considerava sem munições!

Trata-se de um pequeno pormenor numa grande batalha, que facilmente entra no esquecimento. O holandês, porém, adversário nosso um século depois, narra este facto com profundo respeito por um digno rival! As diferentes edições da sua obra em holandês, alemão e inglês), não condizem em todos os pontos, notando-se cortes feitos pelos editores seiscentistas. Todas as edições, porém, mencionam o episódio, o que nos mostra que todos acharam suficientemente interessante para ser transmitido aos seus leitores, o que muito honra este soldado português

TRINTA PARA CADA UM

“Garcia de Sá enviou, em 1519, uma nau comandada por Manuel Pacheco para impor aos Reis de Pacem e Achem o cumprimento do que estava estabelecido por contrato. Quando faltou água a grande nau portuguesa, foi enviado um batel para fazer o reabastecimento. A pequena embarcação era tripulada por cinco portugueses, António de Vera, do Porto, António Peçanha, de Alenquer, Francisco Gramaxo, João Almeida de Quintela e um barbeiro de bordo, sendo remada por escravos malaios.

Já longe da sua nau e perto de terra, foram surpreendidos por um capitão do Rei de Pacem, comandando três navios de 150 homens cada. Os muçulmanos viram ali uma boa oportunidade para rapidamente alcançarem a glória de prender ou matar cinco portugueses! Reconhecendo os cinco o perigo em que estavam, e não o podendo evitar, resolveram então abordar o navio comandante, subindo para bordo aos gritos de Santiago, com as suas espadas na mão direita e as adagas na esquerda. Os mouros, que estavam convencidos de que os cinco se entregariam sem resistência, não podendo contar com nenhum apoio dos seus escravos remadores (perante a óbvia superioridade muçulmana), ficaram perplexos com o valente combate que então se desenrolou.

Couberam trinta adversários mouros a cada um dos portugueses, que os atacaram com uma ferocidade de quem já se considera perdido, querendo ao menos levar consigo o maior número possível de adversários! Quando os mouros começaram a cair mortos e se ouviram os gritos dos decepados, feridos e moribundos, os outros, aterrorizados, atiraram-se ao mar. Perante esta demonstração de falta de coragem dos seus próprios homens, o capitão mouro virou-se com a sua cimitarra contra os seus soldados que saltavam para a água. O capitão envolveu-se em luta com os seus homens, que já não lhe obedeciam, acabando por cair também ao mar, onde ainda utilizou a sua cimitarra para dar cutiladas aos seus, até acabar por se afogar.

Os cinco portugueses ficaram donos do barco mouro, perante os olhos estupefactos das tripulações das outras duas embarcações. Estas, perdendo o seu capitão-geral, mostraram as popas, acabando por se irem embora sem dar mais luta. De certo não se tinham dado conta de que os nossos cinco, exaustos da luta e com muitas feridas cada um deles, acabaram por cair e até desmaiar. Os seus escravos remadores malaios vieram então a bordo para os ajudar; navegaram com o batel rebocado pela embarcação muçulmana conquistada, de volta, em direção à nau. Tratados pelos médicos de bordo, tornaram-se os heróis do dia, facto também reconhecido pelo Rei de Pacem que, perante tal atuação de tão poucos, veio oferecer a paz e a satisfação de todos os danos, conforme o Vice-Rei lhe tinha proposto. A ação destes cinco impediu assim grandes batalhas, com enormes perdas para ambas as partes.”

II
Desfralda a invicta bandeira,

À luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu!
Beija o teu sólo jucundo
O Oceano, a rugir de amor;
E o teu braço vencedor
Deu mundos novos ao mundo!

Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela patria lutar!
Contra os bretões
marchar, marchar!

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