É comumente aceite no mundo ocidental que a democracia é o mais digno sistema político e forma de governo mais eficaz na garantia de estabilidade e satisfação das maiorias. Porém, são vários os pensadores que ao longo da história do pensamento humano alertaram sobre a perigosidade das democracias; seja como forma de tirania das maiorias e a necessidade de uma vigilância constante sobre a possibilidade da sua degeneração, bem como da conveniência de um sistema de contrapoder que seja garante da liberdade de todos os cidadãos.

A própria ideia da noção do estado como garante de estabilidade, de lei e ordem pública, reitera a legitimidade ao estado para intervir sempre que este julgue necessário, nos diferentes campos da vida pública e sempre que os eleitores o permitam; consequentemente, este aval por parte dos cidadãos confere ao estado uma permissividade para estender-se além das suas obrigações básicas, para uma ampliação dos seus poderes e funções administrativas em várias esferas da sociedade. Este aumento dos tentáculos do estado implica portanto, uma maior centralização da sua operacionalidade, provocando por consequência uma maior politização das questões sociais, económicas, culturais etc.; por sua vez criando, uma sensação de identidade absoluta do estado e da sociedade. O próprio estatismo crónico existente em Portugal é espelho disso mesmo: – “Há uma empresa de um sector estratégico que está a dar prejuízo, nacionalize-se”; “Um banco faliu, resgate-se” ; “Existe bullying e promiscuidade nas escolas, substitua-se a educação familiar e façam-se novas disciplinas obrigatórias”, “Há uma pandemia que afeta certos grupos de risco, fecha-se toda a população em casa e o estado que diga quem pode e não pode trabalhar”; “Há pouco poder económico e competitividade, o estado subsidia com o dinheiro dos contribuintes europeus”. A pretexto de garantia de estabilidade, o estado acaba assim por assumir um paternalismo absoluto, tal e qual uma figura paterna num grande lar familiar.

Esta noção ampliada do estado em todas as esferas da sociedade, poderá ser encapsulada naquilo que o sociólogo norte americano Robert Nisbet afirma na sua obra : – “Quest for Community” (1953) – “Nada fora do Estado , tudo do Estado”; com esta frase o autor pretendeu descrever não só a criação da dependência estatal, mas também a ideia de uma nação a caminho do totalitarismo.

 

Robert Nisbet

Quando se fala em totalitarismo, a própria noção está fortemente associada às principais formas de totalitarismos que marcaram o séc. XX., nomeadamente: o nazismo e o comunismo. Estas duas formas de tirania são esclarecedoras não só quanto aos perigos que advêm das ideologias, mas também da perniciosidade de um governo demasiado grande. Embora estas duas formas de totalitarismo estejam ainda na memória coletiva do ocidente, poucos tem a noção de que independentemente da existência de uma democracia indireta, um governo cada vez mais centralizado nas democracias ocidentais poderá degenerar com relativa facilidade em tirania.


Embora subsista na psique coletiva, a ideia da democracia como uma barreira contra a opressão, não será a forma de democracia atual uma porta aberta à possibilidade de tirania ao invés de um muro que a impede?


Além de ser considerado o sistema político melhor ou o menos mau, é muitas vezes atribuído à democracia, a responsabilidade pela prosperidade que se verificou no mundo nos últimos 50 anos e como fonte da aparente estabilidade existente. Com um consenso tão alargado sobre os méritos da democracia, seria de estranhar que alguns dos maiores pensadores da história do pensamento humano ocidental tenham sido os seus maiores críticos: – de Platão, Sócrates e Aristóteles, a Benjamin Franklin e Thomas Jefferson –  todos eles sugeriram nas suas reflexões, que a democracia moderna não seria protetora da liberdade, mas que seria complacente com o surgimento da tirania.


Não obstante os seus defeitos, através da democracia os cidadãos tem a oportunidade de exercer o seu papel no processo político, seja através da votação ou de uma candidatura a um cargo político; em troca destes direitos é esperado que estes obedeçam à vontade da maioria. No entanto, esta noção de obediência à maioria poderá ser contrária à própria noção de liberdade, do mesmo modo que alguém possa ser submetido a obedecer à vontade de um tirano. A ameaça da “tirania das maiorias” surge, quando uma sociedade aceita que a maioria das pessoas, por intermédio dos seus votos, podem forçar uma dada minoria a obedecer e a comportar-se de forma contrária aquilo que é o seu livre-arbítrio. Nas palavras de Benjamin Franklin: “A Democracia são dois lobos e uma ovelha a votarem sobre o que vão comer para almoço”. Atendendo que a estrutura das democracias modernas minimiza, no campo social e económico, a tirania das maiorias, esta ideia não é tida no consciente coletivo ocidental, como a forma de ameaça mais premente. Não obstante salvo raras situações, sob a forma de referendos, a inexistência de uma democracia direta, em que a maioria manda, implicaria mais facilmente uma tirania das maiorias. Por sua vez, nas democracias indiretas, existentes no ocidente, os perigos de uma eventual tirania, embora mais subtis não deixam de ser reais e presentes. As democracias indiretas minimizam o poder conferido ao povo comparativamente com as democracias diretas, na medida em que os eleitores votam em políticos que deverão por sua vez representá-los. Uma vez eleitos, os políticos não são obrigados a agir de forma coerente com aquilo que é a vontade de quem inicialmente os elegeu para serem representados, tão pouco cumprirem com as promessas que os fez serem eleitos. Assim que chegam ao poder, os políticos são mais facilmente influenciados por lobistas e conflitos de interesses do que pelo eleitor comum. A configuração de poder num número restrito de pessoas, é agravada pelo facto de no ocidente, existir um grande número de burocratas que não são eleitos e que tem influência direta na vida das pessoas; uma vez que muitos destes burocratas, são grande maior parte das vezes, responsáveis por muitas das regras e regulamentos que governam as sociedades. É disso exemplo: o modo como é escolhido o(a) presidente da união europeia, do presidente do concelho europeu, do banco central europeu cuja nomeação e eleição não depende de modo algum dos eleitores europeus, mas de um número restrito de burocratas. O enfraquecimento do poder dos cidadãos via eleitoral e a centralização do poder do estado, nos exemplos dados, das instituições supra nacionais, enfraquece a possibilidade de resistência e contrapoder, que, numa democracia madura, supostamente deveria ser conferida ao cidadão comum.


Assim, atualmente, a maior ameaça para a liberdade não é a tirania das maiorias, mas o gradual controlo dos governos e de um número restrito de burocratas e lobistas, sob a vida social e económica dos seus cidadãos.

 

Apesar de diferir bastante no grau em que ocorre, basta um breve olhar pelas tiranias que existiram ao longo do séc. XX., para verificar que também agora se verifica uma crescente centralização de poder, sendo esta uma versão “soft” de totalitarismo, uma vez que a generalidade das pessoas aceitam-nas de bom grado ou vivem alheadas de considerar sequer essa hipótese. Se à partida isto parece tratar-se de uma hipérbole, retomando os exemplo dados da EU ou a gestão mundial dos governos a pretexto da Covid-19, torna-se pertinente debruçar sobre a relevância acerca dos perigos da democracia e do poder centralizado, de que Tocqueville alertou:

“Depois de ter tomado cada indivíduo, um a um, nas suas poderosas mãos e moldando-o como quiser, o poder soberano estende os seus braços sobre toda a sociedade; Abrange a superfície da sociedade com uma rede de regras pequenas, complicadas, minuciosas e uniformes, cujas mentes mais originais e as almas mais vigorosas não podem escapar para ir além da multidão; não contraria vontades mas suaviza-as, dobra-as e direciona-as; raramente faz uso da força, mas opõe-se constantemente à sua ação…impede, reprime, enerva, extingue, estupidifica e, finalmente reduz cada nação a ser nada mais que um bando de animais tímidos e industrializados , dos quais o governo é o seu pastor” (Democracia na América 1835)”

Alexis de Tocqueville

Ao longo da história da humanidade, as relações sociais e comunitárias entre indivíduos subsistiam num conjunto de diferentes instituições e associações independentes do governo: – o mercado, as igrejas, instituições de caridade, universidades, equipas, família etc. Além dos benefícios sociais que advém destas associações e instituições independentes do governo, estas sempre atuaram como barreiras à expansão do poder do governo.

 Consequentemente, a deterioração desse tecido social e a sua substituição por uma relação de dependência total entre indivíduo e estado, foi o precursor para o surgimento do poder centralizado do governo, consequente conflito de interesses, promiscuidade entre público e privado e da tirania de que daí advém.   

Retomando Robert Nisbet em Quest for Community:

 

 

“Não é o extermínio de indivíduos, o fim desejado por governantes totalitários, o que é desejado é o extermínio das relações sociais que, pela sua existência autónoma, devem constituir sempre uma barreira à conquista da comunidade política absoluta. O principal objetivo do governo totalitário torna-se assim a incessante destruição de todas as evidências de associação espontânea e autónoma. Para destruir ou diminuir a realidade das áreas menores da sociedade, para a abolir ou restringir o leque de alternativas culturais oferecidas a indivíduos, há de se destruir em tempo as raízes da vontade de resistir ao despotismo nas suas formas grandiosasa” ( The Quest for Community – 1953)”

Ao passo que nos grandes autoritarismos do sec XX: nazismo e comunismo, a destruição das instituições independentes do estado desenvolveu-se com grande violência e celeridade; atualmente, desde que a pandemia se verificou, a destruição dos laços sociais e das instituições independentes do estado tem-se verificado de forma gradual, por intermédio da coação e da chantagem emocional. Se exemplos faltassem: quando é que foi a ultima vez que lhe foi permitido juntar-se espontaneamente em grupo, em público sem o aval do estado ou jantar fora no horário que lhe aprouver sem o aval do estado?
Afinal, o que nos tem dito consecutivamente, de forma indireta e subtil: – “Se prefere a liberdade individual à alegada segurança é um egoísta, um pária da sociedade que não sabe viver em comunidade.”
Benjamin Franklin havia alertado: 

“Aqueles que abrem mão da liberdade por um pouco de segurança, não merecem nem liberdade, nem segurança e acabarão por perder ambas”

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[…] preponderante relembrar um dos founding fathers, Benjamin Franklyn, que já foi aqui citado, noutro artigo. Aquando de uma disputa tributária entre a assembleia geral da Pensilvânia e a família Penn, […]