É inegável que o momento mais icónico do filme “Matrix” ocorre quando Morpheus apresenta uma situação dilemática ao protagonista Neo: Uma escolha entre a continuidade confortável do quotidiano ou a possibilidade alternativa de aprofundar a compreensão na misteriosa realidade sonegada, o comprimido azul e o regresso para onde se veio ou o comprimido vermelho e a peregrinação sem retorno no “deserto do real” (Frase proferida por Morpheus que por sua vez é uma afirmação emprestada de Jean Baudrillard). Este momento cinematográfico é tão popular que rapidamente se converteu num meme, servindo como imagética para caracterizar uma rutura interpretativa dos fenómenos sociais e culturais. O conceito de red pill serve mesmo para caracterizar uma espécie de despertar ou uma revelação estrondosa e fraturante para uma verdade maior que estaria a ser ignorada.

Cena da decisão no 1º Filme

Só este momento merece ser objeto exclusivo de análise ensaística, pois a forçosa decisão quando pessoalizada consegue revelar bastante sobre o respetivo caracter. Se eventualmente inquirisse de forma aleatória determinadas pessoas familiarizadas com esta cena, suspeito que a maioria selecionaria a pílula vermelha, com maior ou menor relutância, visto que a ideia de entender a ignorância como uma bênção é consideravelmente popular. Porém, é precisamente com essa disposição que convém relembrar o que Morpheus diz a Neo quando ele se prepara para agarrar o comprimido encarnado:

Lembre-se…tudo que ofereço é a verdade. Nada mais.

O enredo do Matrix é declaradamente referenciado pelo trabalho do filósofo citado acima – Jean Baudrillard – mais especificamente da sua obra Simulacros e Simulação (constantemente inserida na trilogia seja em easter egg ou empréstimos frásicos para o argumento). Contudo, este momento em particular é uma clara alusão à alegoria da caverna de Platão.

Nesta conhecida alegoria utiliza-se uma analogia que ainda consegue caracterizar o atual espectador de imagens modelo, que automaticamente tende a assumir tudo o que vê e ouve como Verdade, a partir de um diálogo entre o que produz sombra (domínio das coisas Sensíveis) tida como imagem verdadeira e o produtor dela mesma – a Realidade (domínio das Ideias). Desse modo, ocorre a ascensão do mundo Sensível, das coisas transitórias para o mundo Inteligível, Espiritual e Imutável das Ideias.

“Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos “robertos” colocam em diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles. (…) ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.”

Como os homens que caminham por detrás da parede não projetam sombras, por estarem tapados pelo pequeno muro, as sombras projetadas na parede visível aos prisioneiros são apenas as dos objetos transportados pelos homens. Associado a esta ilusão, está ainda o som que ecoa nas paredes da caverna, cuja origem vem dos diálogos estabelecidos pelos homens que transportam os objetos. Mas, os prisioneiros, veem apenas a sombra dos objetos, e por isso, induzem em erro, pelo facto de associarem o som à fala dessas sombras, que julgam ser a Realidade: “Se lhe fosse possível por a mão num tal homem… matá-lo-iam”, diz Platão numa da última frase da Alegoria da Caverna, provavelmente em relação ao discurso retórico dos sofistas… Porém, não é feita qualquer menção a um inimigo na história de Platão; todos vivem entre si, pacificamente, como simples espetadores de imagens. Segundo a metáfora de Platão, o processo para a obtenção da consciência, isto é, do conhecimento, abrange dois domínios: o domínio das coisas Sensíveis (eikasia e pístis) e o domínio das Ideias (diánoia e nóesis). Para o filósofo, a Realidade está no mundo das ideias – um mundo real e verdadeiro – e a maioria da humanidade vive na ignorância, isto é, no mundo das coisas Sensíveis – este mundo – no grau da apreensão de imagens (eikasia), as quais são mutáveis, não são perfeitas como as coisas no mundo das Ideias e, por isso, não são objetos suficientemente afastados da Verdade para gerar conhecimento perfeito.

Ilustração da Alegoria da Caverna

A caverna simboliza o mundo na condição de alegoria social, porque contém as imagens que não são representativas da Realidade. Embora se trate de um escrito do séc. IV a. C., continua a atuar no entendimento metafórico da sociedade do nosso tempo, na apreensão de todo o tipo de informação. Se deslocarmos a alegoria para o contexto atual, os prisioneiros somos nós que vemos e acreditamos apenas em informação criada pela “cultura popular”.

Poderíamos eventualmente passear nas propriedades filosóficas dos grandes pensadores para considerar as suas sugestões relativamente a este conceito transcendente, desde a Aristóteles, Santo Agostinho, Nietzsche aos desconstrucionistas muitos foram aqueles que contribuíram para a reflexão coletiva relacionada com esta questão derradeira. Todavia, proponho regressar ao filme Matrix e invocar outra cena icónica de forma a poder oferecer uma reflexão hodierna sobre a conjuntura problemática que está a desvelar, essa cena é o momento em que Morpheus esclarece a finalidade energética do ser humano no mundo das máquinas.

Confesso que o termo “recursos humanos” sempre me incomodou, atrevo-me mesmo a dizer que se eventualmente fossemos invadidos por alienígenas superiores, nem eles teriam a indiscrição de sugerir semelhante terminologia. No entanto, neste universo cinematográfico, é precisamente este propósito nutritivo que as máquinas superiores encontraram para os seres humanos.

Morpheus esclarece Neo relativamente ao propósito humano no Matrix

As Máquinas Inteligentes no Matrix lutam pela sua própria sobrevivência através da dominação sobre os homens, transformados em meras baterias de energia (metáfora suprema do trabalho abstrato). No fundo representa uma prefiguração mítica de uma inversão absoluta entre criador e criatura, onde a criatura domina e vive à custa do criador, criando um sistema de dominação novo, uma inversão dialética. Neste caso, Frankenstein mais que fugir impõe-se e domina, cria um sistema de dominação absoluta, de negação da personalidade viva do seu próprio criador. Apesar de suficientemente subversiva, esta ideia foi somente uma simplificação da ideia original, uma versão mais facilmente digestível para os espectadores de forma a anuir às solicitações dos produtores do filme, pois os realizadores inicialmente queriam concetualizar a utilização dos seres humanos não como baterias ou pilhas, mas sim, como processadores.

E é esta ideia original que, mais que recordar a praticabilidade da alegoria citada, se revela escandalosamente premente em matérias de reflexão. A perigosidade da epifania artificial de utilizar a consciência humana como processador na simulação, transforma a submissão virtual numa espécie de colaboração simbiótica e por muito que pareça ficção científica, convém não subestimar esta possibilidade, devido a um episódio específico que emergiu no contexto político americano.

No passado dia 17 de novembro o CEO e fundador do Facebook prestou declarações numa comissão judiciária do senado norte americano juntamente com os CEOs do Twitter, Jack Dorsey e do Google, Sundar Pichai e a certa altura o senador Hawley fez as perguntas e observações, providenciadas por Whistle blowers, mais assustadoras para as pessoas comuns, que encaram os serviços prestados por estas empresas como bens imprescindíveis e aqui limito-me a parafrasear facultando também o vídeo deste momento.

“Sentra is a tool that Facebook uses to track its users, not just on Facebook, but across the entire internet. (…) Sentra tracks different profiles that a user visits, their message recipients, their linked accounts, the pages they visit around the web that have Facebook buttons. Sentra also uses behavioral data to monitor users’ accounts, even if those accounts are registered under a different name.”

As implicações de um esforço coordenado entre as três maiores empresas tecnológicas do mundo ocidental são demasiado incalculáveis e inimagináveis, pois não estamos a ponderar somente um “avatar” mais preciso e uma tipologia comportamental praticamente infalível, mas sim de uma potencialidade premonitória que nos faz recordar outra ficção científica, nomeadamente o “Minority Report” do Steven Spielberg. A disposição etnocêntrica e a alegada superioridade moral de condenar a redoma ideológica e a centralização tecnológica chinesa para no ocidente serem estes hipsters mercenários a replicar um paralelismo do WeChat.

As potencialidades totalitárias deste empreendimento são tão distópicas e absurdamente criminosas que é quase anedótico permanecer indiferente a esta devassa organizada na privacidade individual e coletiva. No entanto, é esta postura desinteressada que caracteriza a conformidade. Relativamente a esta postura, talvez seja recomendável regressar à “paternalidade teórica” que inspirou o filme que nos serviu de ponto de partida.

Segundo Baudrillard, “O que toda uma sociedade procura ao continuar a produzir e reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa. É por isso que esta produção material é hoje, ela própria, hiper-real. Ela conserva todas as características do discurso da produção tradicional, mas não é mais que a sua refração desmultiplicada. Assim, em toda a parte o hiper-realismo da simulação traduz-se pela alucinante semelhança do real consigo próprio.”

A diferença de uma simulação para o simulacro, é que durante a simulação, ainda conseguimos perceber que estamos, de alguma forma, a ser enganados, ou que estamos a viver de alguma forma, algo que não é supostamente real. Já no simulacro, perdemos por completo essa noção. Adotamos como suposta verdade um conceito que já não conseguimos discernir se se trata de uma distorção ou simulação.

Jean Baudrillard

“Em vez de fazer comunicar, esgota-se na encenação da comunicação. Em vez de produzir sentido, esgota-se na encenação do sentido. Gigantesco processo de simulação que é bem nosso conhecido. A entreva não diretiva, a palavra, os telefones de auditores, a participação diversificada, a chantagem a palavra. A informação é cada vez mais invadida por essa espécie de conteúdo fantasma, de transplantação homeopática, de sonho acordado da comunicação. Disposição circular onde se encena o desejo da sala, antiteatro da comunicação que, como se sabe, nunca é mais que a reciclagem em negativo da instituição tradicional, o circuito integrado do negativo. Imensas energias são gastas para manter esse simulacro, para evitar a dissimulação brutal que nos confrontaria com a evidente realidade de uma perda radical do sentido”

Esta permuta da liberdade e privacidade pela segurança e monitorização é tão perniciosa que quando circunstancialmente questionado “se está tudo bem comigo” quase não consigo dialogar sobre outros assuntos e quantas vezes me arremessaram uma versão estropiada do “quem não deve não teme” aquando desta preocupante exposição! Mas também sei, que se me senti frustrado então a culpa é minha, pois não vale a pena forçar a pílula vermelha se a azul foi a escolhida.

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Abel Sampaio Tavares
Abel Sampaio Tavares
3 anos atrás

Outra analogia filosófica interessante com o filme “Matrix” é a dúvida metódica de Descartes e o génio maligno. A ideia de as nossos pensamentos e percepções sensoriais eventualmente não passam de estímulos cerebrais, como num sonho muito real, estímulos estes controlados por um hipotético génio maligno. Nesta metáfora Descartes pretendia mostrar que nenhum pensamento por si só traz correspondências evidentes do mundo real. A partir daí que Descartes chegou à sua descoberta fundamental: “cogito ergo sum” – penso logo existo, esta conclusão poderá servir como analogia para o exercício do pensamento livre e desprendido na procura da verdade, neste caso seria o redpill que Morpheus dá a escolher a Neo.
É por esta riqueza de analogias metafóricas que o Matrix é dos meus filmes preferidos.
Excelente artigo